segunda-feira, 10 de maio de 2010

ILOGISMOS - IRC/LCP I-II-2


Onde, porém estes argumentos invencíveis? Onde estas provas esmagadoras? Onde um só texto que negue o primado de Pedro? Onde os fatos históricos, peremptórios e autênticos que demonstrem não haver a Igreja primitiva reconhecido a soberania do bispo de Roma? Nada, nada disto se lê na obra do Sr. CARLOS PEREIRA. Em lugar de provas e argumentos encontram-se em barda, hipóteses cerebrinas, em diametral oposição com a realidade dos fatos, afirmações temerárias sem ao menos fundamento histórico, citações e acontecimentos erradamente interpretados, e, o que mais é, textos truncados, autores falsamente alegados, tudo emaranhado numa rede inextricável de contradições...


Voltar ao Índice
Página anterior

Pg.115

Livro I - A Igreja Católica
'
Capítulo II - S. PEDRO, PAPA IMORTAL
'
§ 2. - Paralogismos e ilogismos pereirianos.
'
SUMÁRIO: - Paralogismo: O concílio de Niceia; o concílio de Calcedônia: a importância política de Roma; as pseudo-isidorianas; a ambição dos papas. Ilogismos: o primeiro papa; exegese de um texto de S. Mateus; vestígios antigos do papado.

Os esforços inanes do erro não são a melhor contraprova da verdade. As grandes certezas não se impõem menos à razão pelo força positiva dos argumentos em que se estribam do que pelos sofismas e contradições dos que as impugnam.

Tocamos de passo as provas mais conhecidas do primado de Pedro sempre vivos no bispo de Roma.42 Reunamos neste capítulo o que de melhor no arsenal das velhas e enferrujadas armas protestantes encontrou o pastor brasileiro para combatê-lo.

Por confissão declarada do Sr. CARLOS PEREIRA, ao menos no século V, já existia certamente na cristandade a persuasão comum da supremacia espiritual de Roma. Ora, para arguir de erro toda a Igreja, para descartar desdenhosamente todos os testemunhos, portanto, que reúnem no mais alto grau as condições de ciência e veracidade,
___

42. Ao estudarmos adiante a infalibilidade do Papa, aduziremos muitos outros fatos e citações que provam, com com não menor evidência, a sua supremacia jurisdicional. O magistério infalível na ordem da fé e a suprema jurisdição na ordem do governo são duas coroas, que cingem, inseparáveis, a fronte do sucessor de S. Pedro.__

 Pg.116


PARALOGISMO E ILOGISMOS


é mister, que o esforçado polemista tenha encontrado na mais remota antiguidade argumentos invencíveis, provas esmagadoras de que a cristandade inteira viveu no erro, nas trevas, na ignorância e na superstição durante mais de mil anos, até que surgisse o astro de Wittenberg a dissipar as caligens que a envolviam.

Onde, porém estes argumentos invencíveis? Onde estas provas esmagadoras? Onde um só texto que negue o primado de Pedro? Onde os fatos históricos, peremptórios e autênticos que demonstrem não haver a Igreja primitiva reconhecido a soberania do bispo de Roma? Nada, nada disto se lê na obra do Sr. CARLOS PEREIRA. Em lugar de provas e argumentos encontram-se em barda, hipóteses cerebrinas, em diametral oposição com a realidade dos fatos, afirmações temerárias sem ao menos fundamento histórico, citações e acontecimentos erradamente interpretados, e, o que mais é, textos truncados, autores falsamente alegados, tudo emaranhado numa rede inextricável de contradições. Às provas.

Concílio de Niceia. - O concílio de Niceia e o concílio de Calcedônia "reprimem as pronunciadas tendências monárquicas do patriarca de Roma", p. 311.43 - Os textos conciliares que manifestam esta repressão, teve o Sr. CARLOS PEREIRA por de melhor conselho conservá-los no escrínio secreto de suas notas particulares. A respeito do concílio de Niceia diz-nos apenas que: 1.º o papa não o presidiu nem por si nem por seus legados; 2º o cânon 6.º equiparou os bispos de Roma, Alexandria e Antioquia. Falso, uma e outra coisa.

O concílio de Niceia foi presidio por Ósio, bispo de Cordova e Vrro e Vicente presbíteros romanos - como legados do Papa Silvestre. É ler, não os autores protestantes de 12 ou 15 séculos mais tarde, mas as fontes diretas onde se bebe a verdade genuína da história. Que Ósio tivesse presidido ao concílio, afirma-o S. ATANÁSIO, contemporâneo do fato,44 afirmam-no implicitamente os próprios arianos escrevendo que ele "publicara o símbolo de Niceia" 45. Que Ósio fosse legado do Papa di-lo expressamente GELÁSIO DECISICO, historiador do concílio: "ipse etiam Hosius ex Hispaniis...
___

43. Lógico, sr.! Como podia o concílio de Niceia reprimir em 325 " as pronunciadas tendências monárquicas do Patriarca de Roma", p. 311, se "por quase quatro séculos não se separam sequer vestígios, nenhuma tradição, nem um simples monumento da antiquidade que perpetue a memória do governo da mais estupenda das monarquia?", pág. 301.

44. Apolog. de fuga sua, c. 5 (MG, XXV, 650).

45. Ap. ATANÁS, Hist. Arian., c. 42 (MG, XXV, 743).
___



Pg.117 

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


qui Sylvestris episcopi maximae Romae locum obtinebat una cum romanis presbyteris Bitone et Vicentio cum aliis multis in consensu illo affuit".46 Mais. SÓCRATES, na sua história eclesiástica, enumerando os bispos do concílio cita, em primeiro lugar, Ósio, depois Vito e Vicente e a seguir os demais presentes.47 Os antigos catálogos que indicam a ordem em que os padres subscreveram o símbolo niceno dão sempre o lugar de primazia a Ósio, Vrro e Vicente. Como explicar esta preeminência dada a um bispo espanhol e a dois sacerdotes romanos num congresso reunido no Oriente e no qual assistiam os mais autorizados bispos de Antioquia, de Jerusalém e do Egito, senão porque representavam o bispo de Roma, cuja autoridade era universalmente reconhecida na Igreja, assim oriental como ocidental, como consta de textos explícitos anterior ao concílio? Ainda. Se o Papa não houvera presidido ao primeiro concílio ecumênico, com que verdade poderia o legado pontifício asseverar em Calcedônia, diante de 600 bispos orientais: "synodum facere sine auctoritate Sedis apostolicae... nunquam factum est nec fierit lucuit"?48 Como poderia escrever SÓCRATES: "ecclesiastica regula interdictum est, ne praeter sententiam Romani Pontificis quidquam ab ecclesiis decernatur"" 48a Com que consciência científica ousa, pois, adiantar o Sr. CARLOS PEREIRA que este é "um fato histórico incontestável"? p. 312.

Vamos ao cânon 6 do mesmo concílio, não citado pelo autor. Ei-lo: "Conservem-se os antigos usos vigentes no Egito, na Líbia e na Pentápolis, que o bispo de Alexandria conserve o seu poder sobre todas estas regiões como costuma o bispo de Roma. Outrossim em Antioquia e nas outras províncias conservem as igrejas os seus privilégios, dignidade e autoridade". De que trata este cânon? Porvenura, do primado? Não, de modo nenhum. O Cânon 6, como todos os outros cânones deste capítulo, versa somente sobre as divisões administrativas dos patriarcados. A causa que lhe motivou a promulgação não foi "reprimir as tendências monárquicas do patriarca de Roma", como sonhou o Sr. CARLOS PEREIRA, mas pôr termo às tentativas de MELÉCIO, bispo de Licópolis na Tebaida, que procurava eximir-se à sujeição do
___

46. Hist. Conc. Nic. I, II, c.5 (MG, LXXXV, 1230).

47. SÓCRATES, Hist. Eccles., I, 13 (ML, LXVII, 110).

48. MANSI, VI, 532 B.

48a. Hist. Eccles., II, 17 (MG, LXVII, 219).
___


Pg.118

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


patriarca de Alexandria. O Cânon confima "os antigos usos" sobre a jurisdição dos patriarcas e entre estes inclui o de Roma, que, além de ser Papa, é também patriarca, bispo, etc. Afirmar uma coisa não é negar outra. O concílio afirma de passagem o direito do patriarca romano para legitimar, com a semelhança, o do alexandrino. Não lhe nega, porém o primado, nem deste se tratava porque não era necessário: ninguém o contestava.

Que este cânon de modo algum fere as prerrogativas da Sede romana colige-se ainda: 1.º de o haverem aprovado os legados pontifícios que presidiam ao concílio; 2.º de não existir nesta época, nem no Oriente, nem no Ocidente, a menor dúvida sobre a supremacia jurisdicional do Papa; 3.º de o haver citado e alegado contra as ambições de Constantinopla o papa S. LEÃO, zelantíssimo defensor dos direitos divinos da Sé de S. Pedro; 4.º de não lhe haver dado este sentido toda a antiguidade que nos séculos imediatos ao concílio nunca apelou para ele contra "as usurpações crescentes" de Roma. Notável! Uma assembleia ecumênica legisla no século IV para a Igreja contemporânea; e o recôndito e indecifrável sentido dos seus cânones só o vem penetrar, muitas centenas de anos mais tarde, a agudeza da crítica protestante!


E aqui está o a que se reduz em Niceia a repressão das tendências monárquicas do patriarca de Roma: um falsidade histórica e um cânon fantasticamente interpretado.

Ao concílio de Calcedônia.49 A prestarmos fé a quanto nos assevera o gramático paulista, "o concílio de Calcedônia em 451 declarou serem iguais os patriarcas de Roma e de Constantinopla (aequalia privilegia tribuerunt). Nesse século ainda o bispo ou patriarca da velha Roma não tinha nenhuma supremacia jurisdicional sobre o da nova Roma", p. 300. "Debalde contra o cânon 28 protestaram os legados papais e o próprio papa", p. 312.

Novamente nos achamos diante de uma adulteração flagrante da verdade histórica. Não é cortando à tesoura três palavras de um cânon e isolando-as do contexto imediato e mediato que se investiga sinceramente a significação de um documento. Quem lê o cânon para logo se persuade que não se trata do primado universal da Igreja, mas de direitos patriarcais nos quais o bispo de Constantinopla
___

49. Ao argumento tirado do concílio de Constantinopla, também alegado pelo Sr. CARLOS PEREIRA, cabem as mesmas observações que faremos ao propósito do concílio de Calcedônia. Inútil repetirmo-nos.
___

Pg.119


PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


o segundo lugar depois do de Roma.50 As circunstâncias históricas acabam de projetar copiosa luz sobre o seu verdadeiro significado. Segundo o concílio de Niceia, as sedes de Antioquia e Alexandria, ambas de origem apostólica, eram em dignidade as primeiras do Oriente. ANATÓLIO, patriarca de Constantinopla, aspirava, porém, a elevar a sede da nova capital do império acima das suas irmãs mais antigas de modo que submetida a Roma (secunda post illam existens) não reconhecesse outra superioridade no Oriente. É esta aspiração ambiciosa de ANATÓLIO, insuflado pelo imperador e pelo clero bizantino, que se revela no cânon 28 do concílio calcedônio construído quase unicamente por padres orientais. Eis que, reconhecendo explicitamente a suprema jurisdição de Roma pede o concílio ao Papa que com sua autoridade confirme e sancione.51
S. LEÃO, cônscio da plenitude do seu poder, julga não dever anuir aos desejos do concílio por serem inspirados por ambições mundanas e lesarem os direitos das sedes de Antioquia e Alexandria estabelecidos nos cânones de Niceia. Com a sua autoridade, cassa e irrita a deliberação firmada em Calcedônia.52 Neste
___

50. Eis o cânon 28: "Eadem consideratione moti 150 Dei amantissimi episcopi sanctissimo novae Romae throno aequalia privilegia tribuerunt recte indicantes urbem, que et imperio et senatu honorata sit et aequalibus cum antiquissima regina Roma privilegiis fruatur, etiam in rebus ecclesiasticis, non secus ac illiam extolii ac magnifieri sucundum post illam existentem; ut et Pontificae et thraciae et asianae Diocesis metropolitani... a praedicto throno Sanct. Constantinopolitanae ordinentur". MANSI, VII, 370. Os 150 bispos a que alude o cânon no princípio são os Padres do 1.º concílio de Cosntantinopla, que já haviam feito a mesma proposta. Convém ainda não esquecer que este cânon não é conciliar. Introduziu-o subdolamente a minoria dos bispos - os dependentes do território de Constantinopla reunidos em comissão particular - enquanto a maioria - os legados de Roma, os bispos da jurisdição de Antioquia e de Jerusalám (os do Egito já haviam partido) e os protetores imperiais do concílio, reunidos em outra comissão - se ocupava de compor o dissídio de Máximo Antioqueno com o seu predecessor e Juvenal de Jerusalém.

51. Na carta enviada pelos padres calceconenses ao Papa: "Rogamus igitur et tuis decretis nostrum honora indicium, et sicuti no capiti in bonis adecimus consonantiam sic et Summitas Tua filiis quod decet adimpleat". E no fim da epístola: "Omnem vogis gestorum vim insinuavimus ad comprobationem nostrae sinceritatis et ad eorum, quae a nobis gesta sunt, firmitatem et consonantiam". (ML, liv, 959. Os padres, pois, não "conferem as prerrogativas episcopais que possuia a velha Roma, à nova Roma", p. 312, como assevera o nosso protestante, pedem ao papa que confirme quanto deliberaram como um pai que satisfaz aos desejos de seus filhos.

52. "Consetiones vero episcoporum sanctorum canonum apud Nicaeam conditorum regulis repugnantes unita nobiscum vestrae fidei pietate in irritum mittimus et per auctoriatem B. Petri apostoli generali prosus definitione cassamus". Epist. 105, c. 3 (ML, LIV, 1000). Este apelo do zeloso Papa para as definições de Niceia é mais uma prova: 1.º de que no cânon 6 do 1.º concílio ecumênico nada se disse ou decretou que lesasse as prerrogativas da sede apostólica; 2.º que o bispo bizantino não aspirava senão a uma superiodade patriarcal sobre Antioquia e Alexandria, contrariamente ao que ficara assentado em Niceia.
___


Pg.120

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


sentido escreve à imperatriz PULQUÉRIA, ao patriarca ANATÓLIO e aos bispos do Oriente. Qual o efeito deste ato peremptório e enérgio do Papa? Qual a atitude da Igreja em face da decisão do seu supremo jerarca? O imperador aquiesce; o cânon 28 é eliminado de todas as antigas coleções de cânones conciliares, assim latinas como gregas;53 ANATÓLIO,, patriarca bizantino, cuja causa se tratava, submete-se e escreve a LEÃO uma epístola em que humildemente se desculpa da ousada petição a que o induzira o clero constantinopolitano.54 Depois do episódio de Calcedônia o patriarca de Bizâncio continuou ainda por longos anos a ocupar entre as dignidades da Igreja o mesmo ponto jerárquico dos tempos anteriores.

Aí está como o concílio de Calcedônia "reprime as tendências monárquicas do patriarca de Roma". O seu célebre cânon 28, não mutilado e adulterado, mas posto no contexto histórico, que moldura, longe de ser uma dificuldade contra o primado de Roma, constitui-lhe uma das provas mais ineressantes e irregrafáveis.55

Eis quando em matéria de decisões conciliares e textos da antiguidade cristã logrou desencantar o Sr. CARLOS PEREIRA para demonstrar a "suprema mistificação do papado" forjada "entre as superstições caliginosas da Idade Média".

No entretanto aí está de pé a grande instituição e é mister explicar-lhe a origem. O afoito crítico não descoroçoa ante a dificuldade da tarefa.

Aqui nos aponta a importância de Roma, centro político de uma império universal, como explicação plausível da monarquia pontifícia. - Mas esquece que é inútil fantasiar hipóteses em contradição com os fatos. Toda a antiguidade vê no bispo de Roma o
___

53. Só mais tarde foram os gregos desenterrar esse velho e inutilizado cânon para justificar as suas miras ambiciosas de independência cismática. A sua redação atual é, em parte, devida a manipulação de Fócio.

54. Eis um tópico da carta de ANATÓLIO a LEÃO: "Constantinopolitanae ecclesiae reverentissimus clerus est qui hoc habuit studium, et istarum partium religiosissimi sacerdotes, qui in hoc fuere concordes et sibi partium adiutores, com et sic gestorum vis omnis et confirmatio auctoritate fuerit vestrae beatitudinis fuerit reservata". Epist. 132, (ML, LIV, 1084). E no séc. V "ainda o bispo da velha Roma não tinha nenhuma supremacia jurisdicional sobre o da nova Roma", p. 300.

55. Pela história do sínodo de Calcedônia vê-se, de fato, que o Concílio Vaticano, ao definir ainda uma vez o primado de jurisdição do Papa não lhe atribuiu nenhuma prerrogativa que já no séc. V não tivesse exercido S. LEÃO aprovado pelo consenso universal da Igreja, assim do Ocidente como do Oriente, ainda não separado pelo cisma da grande unidade católica. Quem quiser sentir toda a impressão da força deste argumento leia a recontrução histórica deste episódio feita diretamente sobre as fontes por M. D'HERBIGNHY, Thologica de Ecclesia (2), Parisiis, Beauchesne, 1921, pp. 119-152.
___


Pg.121

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


supremo jerarca do cristianismo porque nele reconhece o legítimo sucessor de S. Pedro a quem Cristo confiou o governo universal de sua Igreja. É o que dizem explicitamente todos os testemunhos. Esta é a verdade histórica. Sair daí é arquitetar castelos aéreos, é substituir o estudo positivo da realidade pelas construções cerebrinas da imaginação apaixonada.

Ali nos indica as falsas decretais de Isidoro, aparecidas no século IX como uma impostura que serviu "largamente aos intuitos filauciosos dos papas", p. 317. - Não adverte, porém que no século IX, por própria confissão dos protestantes já se achava plenamente constituída e acatada a soberania dos Papas. Não nos ensina o próprio Sr. CARLOS PEREIRA que LEÃO (440-461) e GREGÓRIO (590-604) foram os primeiros papas? Por que não observar ainda que as grandes atribuições, adjudicadas aos papas pelas falsas decretais, já de há muito eram por eles exercidas antes que as pseudo-isidorianas viessem à luz?56

Mais além nos descreve como as doações do reis francos fundaram a consolidaram o poder temporal dos Papas. Mas por que baburdiar grosseiramente questões tão distintas? Uma coisa é a soberania política dos Pontífices, outra a sua supremacia religiosa, tão distante da primeira como o céu da terra. O primado é de direito divino, estriba-se na constituição essencial da
___

56. Como explicar, porém, essa falsificação de decretais? A crítica ainda não conseguiu projetar plena luz sobre a origem destes documentos. Com certeza sabemos apenas o tempo e o lugar em que foram forjados. A França ocidental é o seu berço. Entre 845 e 857 nasceram. Quem as compilou? Com que intuitos: Só nos restam conjecturas mais ou menos prováveis. Em qualquer hipótese, que culpa têm os papas que um particular, num ângulo da cristandade, falseie antigos decretos? Já MARTINHO I punia a falsificação de documentos pontifícios em PAULO, arcebispo de Tessalônica. O 8.º concílio ecumênico renovou em 869 os mesmos estatutos contra as falsificações de Fócio. No tempo dos carlovíngios o abuso tornou-se mais frequente. Os papas intervieram com gravíssimas penas. INOCÊNCIO III insurgiu-se energicamente contra estas corrupções condenáveis. O sínodo de Treviri e a Bula In coena domini tratam esta culpa como caso reservado, cominando aos seus fautores a pena de excomunhão. Por que requinte de má fé, pois, responsabilizar os Papas por falsificações que deste o 7.º século eles foram os primeiros e reprovar e reprimir com tanta severidade? - Se as pseudo-isidorianas lograram larga acolhida na cristande é só porque enunciavam doutrina comum e preconizavam direitos pontificios universalmente reconhecidos. - O que, além disso, nos assevera o Sr. C. PEREIRA que só "em tempos modernos as letras protestantes desvendaram esse logro secular", p. 317, é, de todo em todo, falso. Já no século XII, PEDRO COMESTOR e ESTÊVÃO, bispo de Tournai, suspeitaram a genuidade das decretais em questão. No séc. XV, O cardeal NICOLAU, de Cusa, o Cardeal TORQUEMADA, COBELIN e KALTERSEN propuseram mais abertamente as suas dúvidas. Os primeiros apologistas católicos contra a reforma lulterana, ANT.º AUGUSTIN, bispo de TarragnA, BARÔNIO e BELARMINO refugaram-nas decididamente por espúrias. Alegar hoje contra o Papado as decretais pseudo-isidorianas é anacronismo semelhante ao de que pretende expugnar uma praça forte moderna com os aproches de arietes pesados e arqueológicas catapultas.___

Pg.122

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


Igreja estabelecida por Cristo, imutável, duradoura como os séculos. Na humildade das catacumbas os primeiros sucessores de S. Pedro não a possuiam menos completa, menos perfeita que GREGÓRIO VII ou INOCÊNCIO III, entre os explendores de sua realeza temporal. Depois de injustamente esbulhados dos seus domínios pela usurpação piemontesa não foram menos papas PIO IX ou LEÃO XIII, ou BENTO XV. A soberania político-territorial, essa é de origem humana. Foi o grande meio de que se serviu a Providência para assegurar ao chefe da cristandade a independência necessária ao exercício de sua missão espiritual. Baralhar as duas coisas para ver na realeza temporal de Roma a causa e origem de sua primazia religiosa é desconhecer a história e cincar nos pirmeiros elementos que definem o estado da questão. A este escamotear sofístico chamavam os velhos lógicos "ignoratio elenchi".

Todos estes fatores do primado romano até aqui apresentados não passam, no pensar dos nossos adversários, de simples instrumentos habilmente manejados pelas "ambições descomunais dos papas", p. 317. É este descomunal ambicionar, é esta febre de insaciável crescer que constitui a mola central da poderosa máquina política que elevou aos ares o grandioso edifício da hegemonia romana.

Nada mais fútil, nada mais arbitrário, nada mais grotesco, nada mais absurdo. Onde as provas desta suposta ambição? Mostrai-me na história estes monstros romanos devorados pela sede de dominar. Não me comeceis, porém, por supor o que se deve demonstrar, não me estatuais de antemão como princípio indiscutível, que o primado é um poder ilegítimo para apontar-me logo em cada ato pontifício em que o papa exerce ou reivindica os seus direitos, uma tentativa de usurpação. LEÃO e GREGÓRIO, dezem-nos, foram os grandes artífices da monarquia papal. A cristande inteira venera-os como santos, a história sagrou-lhes a grandeza com o sobrenome de Magno, a graça enriqueceu-os das mais heróicas virtudes, Deus confimou-lhes a santidade com os mais explêndidos milagre. E estes seriam "os grandes ambiciosos" que transformaram a Igreja de Cristo em sinagoga de satã!

Ambiciosos os pontífices romanos? E por que a ambição só se havia de assentar no trono de Roma? Por que Alexandria e Éfeso, Antioquia e Cesareia, Jerusalém e Corinto não haveriam também erguer a cabeça altiva e à ambição do Ocidente opor as ambições do Levante? Por que nos séculos de ouro da igreja oriental não viu a história avultar em cada patriarca um papa em miniatura?

Pg.123

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


Imposto pela ambição dos papas o poder de Roma? "Mas talvez um poder que se impõe pode resistir por mil e novecentos anos ao espírito de orgulho e de revolta que agita a nossa miserável natureza? Talvez duzentos e sessenta e nove usurpadores tão diferentes por gênio e por índole poderiam vingar na opressão da mais santa das liberdades sem mudar o poder absoluto que se atribuíram  Talvez Cristo cuja divindade a heresia reconhece deixaria gemer a Igreja desonrada sob o peso de tão longa iniquidade?57
Fossem os Papas ambiciosos. E a Igreja? E os bispos de todo o orbe católico? Apraz-vos considerá-los como homens comuns impelidos pela força das paixões que fermentam no fundo da humanidade? Como então explicar a conivência do seu silêncio? Ontem superiores autônomos, independentes, iguais, hoje, súditos obedientes, peados por uma força mais alta no exercício de sua jurisdição, julgados, depostos, removidos a uma ordem do Papa, sem um brado de protesto, sem um gesto de revolta! Não é possível, porque não é humano.

Preferis encará-los como santos, homens de virtudes excepcionais, pastores zelosos, atalaias sempre vigilantes pela integridade da fé e moralidade dos costumes na Igreja? Dizei-me então por que se calaram ante esta adulteração sacrílega da obra de Cristo. Registra a história memoráveis controvérsias suscitadas pela mínima novidade na fé, pela mínima tentativa de falsear um dogma, de introduzir na liguagem cristã uma só palavra que pudesse dar azo a interpretações errôneas. Quem desconhece os tumultos e as agitações provocadas em toda a Igreja pelas heresias de ÁRIO, NESTÓRIO e PELÁGIO, pelas discussões sobre o batismo dos hereges, sobre a data da celebração Páscoa? Quantos livros publicados quantos concílios reunidos, quantos motins no povo, quanto zelo nos bispos, quantos anátemas fulminados! E diante da ambição crescente deste patriarca ocidental, que não impugna um ou outro dogma, mas corrompe na sua essência a constituição social da Igreja, o mundo católico emudece, curva a cabeça e genuflete! Nos quatro primeiros séculos é de fé em toda a Igreja que os bispos são iguais, que Cristo instituiu uma federação de dioceses autônomas e independentes; no século V já é de fé que um é o monarca de toda a cristandade ao qual devem submissão e obediência todos os outros pastores. E esta mutação profunda, gravíssima, radical como as que
___

57. MONSABRÉ, conférence, Conf. LVI.___

Pg.124

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


mais o podem ser no credo católico, insinua-se brandamente sem suscitar uma polêmica, sem acordar um alarme nas sentinelas de Israel! Ainda uma vez, impossível!

Mas os bispos retraem-se acobardados, recolhem-se com temor ante a potência de Roma. - Ah! Não se calunie a memória destes heróis em cujo peito palpitava um coração de mártir. Diante de que poder humano emudeceu a eloquência de CRISÓSTOMO, vacilou a coragem de ATANÁSIO, empalideceu a intrepidez de AMBRÓSIO, calou o gênio de AGOSTINHO ou tremeu a pena de JERÔNIMO? E são justamente JERÔNIMO, AGOSTINHO, AMBRÓSIO, ATANÁSIO e CRISÓSTOMO que não só não levantam a voz da indignação e do protesto contra o bispo de Roma - força moral sem exércitos nem legiões, sem armas nem tesouros - mas que apregoam altamente com o seu exemplo a soberania divina dos sucessores de S. Pedro!

Mas que o Papa lograsse enfim impor a sua autoridade a toda a Igreja. Fora esta a mais profunda e radical transformação de que há lembrança nos fastos da história cristã. Não se trata de um dogma recôndito cujo influxo se faz sentir quase exclusivamente nas remontadas regiões da teologia; é um novo poder que entra em ação, legisla, julga, condena, impõe e exige obediência de todos. Não se trata de uma inovação de insignificantes consequências; é uma alteração substancial que interessa à forma orgânica da Igreja. Da introdução do primado, dizem os próprios protestantes, data a perversão radical do catolicismo. Não se trata de uma modificação local ou particular; a Igreja universal, o Oriente e o Ocidente ressentem e confessam a ação onímoda e profunda do bispo de Roma no dogma, na moral, na disciplina, na liturgia. Não se trata enfim de uma metamorfose operada nos séculos mais escuros da Idade Média. LEÃO I "o primeiro dos Papas", no dizer do Sr. CARLOS PEREIRA, é do meado do século V. Ora, os séculos IV e V são os mais brilhantes da literatura eclesiástica. Estamos em plena luz duma idade de ouro da história, do dogma e da pregação católica.

Agora pergunto. É possível que tão profunda, tão universal, tão manifesta transformação se houvesse realizado sem deixar, nas antigas memórias, o menor vestígio? Apontem-nos os protestantes um só documento, um só testemunho dos tantos e tantos autores dessa época em que se afirme a origem histórica do papado posterior aos tempos apostólicos. IRINEU e CIPRIANO, ORÍGENES e EUSÉBIO, AGOSTINHO e JERÔNIMO, com incansável paciência, indagaram, investigaram, esquadrinharam as origens e o desenvolvimento do

Pg.125

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


cristianismo nos primeiros séculos. Encontrar-se-á nestes ou em outros escritores coevos uma só palavra, uma só frase que atribua ao Pontificado uma origem diversa da investidura divina conferida a Pedro? Não; nenhum vestígio, nenhuma sombra da grande metamorfose sonhada pelo protestantismo. Nenhuma sombra, nenhum vestígio nos hereges, nos cismáticos, nos bispos condenados, excomungados, destituídos dos seus cargos pelo Papa.











Nenhum se atreve a denunciar ao mundo católico este "colosso de pés de barro!, esta "suprema mistificação". De novo pergunto: é isto possível?

Impossível, impossível, clama a razão ultrajada nos seus princípios. Impossível e blasfemo, acrescenta a consciência cristã ferida na sua fé. É o argumento que há pouco nos indicava MONSABRÉ. Desenvolvamo-lo.

Admitida contra todas as leis da história e da natureza humana esta corrupção essencial do cristianismo pela Igreja romana, Deus a teria aprovado e sancionado com o mais prodigioso e estupendo milagre da ordem moral. A esta Igreja que transformara a instituição de Cristo em sinagoga de Satã, ao catolicismo que no vértice da hierarquia eclesiástica teria entronizado o Anticristo, a Providência durante dois milênios teria dispensado a mais escandalosa proteção e prodigalizado os mimos mais estimados da sua solicitude materna. Na fronte da Igreja brilham, autênticos e inconfundíveis, os caracteres da Esposa de Cristo. Nela, a apostolicidade de origem,milagrosamente conservada através das mais variadas vicissitudes históricas. Nela, a unidade da fé, do governo, do culto, perpetuada entre as mais profundas revoluções intelectuais, políticas e religiosas da humanidade. Nela, a santidade da moral, a incolumidade dos princípios éticos, a fecundidade da graça santificadora, a refulgir perene, dentre as sombras escuras do século corruptor, no heroísmo admirável dos seus santos, na beneficência generosa e desenteressada das suas instituições, na autenticidade incontestável dos seus milagres. Nela, a catolicidade de sua extensão que se dilata pelo mundo inteiro a acolher à sombra de suas tendas quase quatrocentos milhões de crentes disseminados em todas as latitudes, habitantes de todos os continentes, filhos de todas as raças.

Separa-se uma seita da grande árvore católica? Revolta-se uma igreja contra a autoridade do supremo Pastor? Deus a castiga com a esterilidade, a dissolução e a morte. De Roma se separam os arianos, os nestorianos, os monofisitas. Onde estão hoje

Pg.126

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


os sequazes de ÊUTIQUES, NESTÓRIO e ARIO  Contra Roma levanta-se FÓCIO e arrasta ao cisma numerosas cristandades do Oriente. Que é feito hoje da igreja russa ou constantinopolitana? Sem apóstolos, sem missionários, sem doutores, sem virgindade, sem zelo, sem heroísmo, languesce na estagnação, escravizada aos poderes civis, ao jogo aviltante dos czares de todos os tempos. Contra Roma insurge-se o protestantismo que contamina grande parte do Setentrião da Europa. Que é o protestantismo depois de quatrocentos anos? Um nome de revolta a cobrir um grande organismo religioso em dissolução irremediável à espera que o vento dos séculos lhe dissipe os últimos restos em poeira impalpável. Onde a unidade da fé nestas mil seitas que se fulminam anátemas recíprocos em tudo e só fraternizam no ódio ao Papado? Onde a unidade de culto nesta multidão de igrejas sem altar nem sacrifício e cujos adeptos ou depravam o sentimento religioso nas práticas supersticiosas do iluminismo 38 ou se estiolam na indiferença de uma racionalismo cético? Onde o heroísmo das virtudes cristãs nestes pastores casados, nestes ministros que fogem ao martírio, nestas donzelas que já não sabem jurar eterna virgindade ao virgem Esposo das almas?

Como então? Cristo, que prometera assistir à sua Igreja todos os dias até à consumação dos séculos, permitiria assim a conservação, o desenvolvimento, a grandeza, o brilho da Igreja prevaricadora e fulminaria de esteridade e de morte as depositárias fiéis da sua doutrina? Não! Não! Nunca! Impossível e absurdo aos olhos das razão; escandaloso e blasfemo à luz da fé.

Ilogismos. - Mas não há talvez mais gloriosa prova da instituição divina do Papado do que as contradições palpáveis dos que a impugnam. CARLOS PEREIRA oferece-nos mais um exemplo memorável desta impotência congênita do erro contra a verdade. As suas afirmações encontram-se, entrechocam-se, destroem-se num caos indescritível de flgrantes antilogias.



O capítulo sobre "os germes do Papado", rompe-o ele com estas auspiciosas e promissores palavras: "mais claras e autênticas que as cabeceiras do Nilo são as origens do Papado", p. 301. - A audácia dos modernos descobridores devassou por completo as veladas origens do rio misterioso. Hoje, o estudantinho de geografia, com
___

58. Tenho presente a seita do iluminista sueco Swedenborg e o grande movimento do "Revival" que, no século passado, dos Estado Unidos se propagou a numerosas comunhões protestante da Inglaterra e da Alemanha.
___


Pg.127

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


mapa diante dos olhos, aponta-lhe as nascentes e segue-lhe, trecho a trecho, o avolumar progressivo das águas caudalosas. Mais "clara e autenticamente" nos ensinará o explorador brasileiro a origem e o desenvolvimento histórico do Papado. Ouçamo-lo atentamente: "Em 590 é elevado ao sólio pontifício GREGÓRIO I, o Grande... o primeiro dos papas", p. 315. Nada tão claro e peremptório: GREGÓRIO MAGNO é o primeiro dos papas. Antes do primeiro poderá haver outro? Para C. PEREIRA, sim. Volvei trezentas páginas atrás e lede: "LEÃO O GRANDE (440-461)... é o primeiro a sonhar com uma monarquia universal, com sede em Roma e por chefe o papa", p. 7. Seria simples sonho? Não; é realidade realíssima. De fato, aparece com Leão I, no século V, o primado de S. Pedro", p. 297. Também aqui tudo é claro e autêntico. GREGÓRIO I é o primeiro papa, mas já 150 anos antes tinha surgido com LEÃO I o primado de S. Pedro. Mas será LEÃO definitivamente o primeiro papa? Ainda não: "Com Vítor I (190-202) temos o primeiro movimento do feto papalino no seio da história", p. 309. E já o papado se move em feto no século II. Quando foi concebido? Não no-lo diz o diligente investigador: as cabeceiras do Nilo cobrem novamente com o véu do mistério. Se remontardes ao primeiro século encontrareis em CLEMENTE "um certo tom de superioridade que é manifestação inconsciente (como o sabe o ilustre crítico?) do espírito dominante do antigo povo-rei", p. 304.

Destaste para determinar "clara e autenticamente" a origem do Papado, remontamos dos fins do século VI, em que aparecem com GREGÓRIO o primeiro papa, aos últimos anos de século I em que já se manifesta em CLEMENTE o seu espírito de dominação. Estamos em plena idade apostólica. Mais um esforço de boa vontade e o laboriosos explorador descobriria as nascentes desconhecidas do grande rio. Lá estão elas escondidas no Evangelho: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela". Desta rocha firmada pela mão de Deus brotou a caudal majestosa.

- Mas este texto, acode o nosso crítico, a Igreja primitiva não o entendeu, os bispos de Roma o ignoravam.. De fato, Leão I "é o primeiro a aduzir... o argumento fundado na suposta primazia de S. Pedro", p. 7. - Mas está realmente convencido o ilustre gramático que a LEÃO I cabe a invenção desta exegese? Creio que não. Abro a p. 310: "Foi este bispo africano (S. Cipriano, 200-258) o primeiro a dar à célebre passagem de S. Mateus XVI, 16, o sentido do que mais tarde se serviu o papa Leão I para nela firmar a Cathedra Petri,59 p. 310.

Pg.128

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


CIPRIANO precedeu, pois a LEÃO que foi o primeiro. Se o erudito pastor fosse mais lido nos antigos documentos, daria talvez competidores a CIPRIANO: diria talvez que S. ESTÊVÃO 60 precedera a CIPRIANO; diria, talvez que CALISTO tomara o passo a ESTÊVÃO. E não é maravilha. Fora realmente mister a penetração de CIPRIANO ou a sagacidade de LEÃO - ambos primeiros a dois séculos um do outro - para desvendar os segredos de tão recôndita hermenêutica? Não sabiam todos os fiéis que Pedro fora constituído fundamento da Igreja e que o fundamento deve durar quanto o edifício que sustenta? Não sabiam que sem interrupção lhe haviam sucedido os pontífices romanos anteriores a ESTÊVÃO e a LEÃO? Que mais é mister para entender S. Mateus?

Que! Atalha ainda o Sr. C. PEREIRA, antes de S. LEÃO não pôde haver papado. Não se lhe notam sequer os vestígios: "mais de quatro séculos decorrem sem que surgissem na história os primeiros sintomas do seu advento", p. 295; "passou ela [a monarquia papal] completamente despercebida por quatrocentos anos a seus súditos e atravessou silenciosa e desconhecida mais de oito gerações!, p. 301. Notai bem e depois voltai quatro páginas e lede: "Bem cedo, pois [em Vitor e Clemente] se revela o vírus romano", p. 305. No fim do segundo século já se move o "feto papalino no seio da história", p. 309; "nos escritos dos padres primitivos... são visíveis, os germes do papismo", p. 304.

Admirável de coerência tudo isto! Nos quatro primeiros séculos não surgem ainda os sintomas do papado... mas nos primitivos já são visíveis os seus germes. Silenciosa e desconhecida passou a monarquia pontifícia por quatrocentos anos... e os brados de CLEMENTE, INÁCIO, IRENEU e TERTULIANO são tão poderosos que os seus ecos atroam através de dezoito séculos até aos ouvido do professor de S. Paulo. - Mais uma e basta. A culpa não é do senhor CARLOS PEREIRA, é dos autores que o precederam, católicos e não católicos. "Du pin, eminente historiador, o cardeal Belarmino, Alexandre e outros perscrutraram com grande cópia de erudição os monumentos das antiguidades cristãs e tiveram de reconhecer o silêncio dos primeiros séculos sobre um fato tão estupendo... De fato, acrescenta Samuel Edgar, nada se encontra sobre a supremacia de S. Pedro e muito menos do bispo de Roma nos escritos dos padres primitivos: 
___

59. Uma pergunta inocente: poderia o Sr. CARLOS PEREIRA indicar-nos antes de S. Cipriano um exegeta que houvesse dado "À célebre passagem de S. Mateus" o sentido de que mais tarde se serviriam os protestantes impugnar a Cathedra Petri?

60. FIRMILIANUS inter Op. CYPRIANI, EP. 75, N. 17 (hartel. 821).
___

Pg.129

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 


de Clemente Romano, Hermas, Barnabé, Inácio, Policarpo, Justino, Irineu, Clemente de Alexandria, Atenágoras, Taciano, Teófilo e Tertuliano. O historiadores católicos romanos supracitados 61 só encontraram referência ou alusão à dignidade pontifical do bispo de Roma cerca do ano 370", p. 301. - E, no entanto, quem tal o crera? O que não logrou encontrar o empenho dos apologistas católicos conseguiu afuroar a erudição do Sr. CARLOS PEREIRA. A quatro, apenas quatro páginas de distância desbota-se-lhe da memória o que tão desabaladamente afirmara e escreve mui seriamente: "em Inácio, Irineu, Tertuliano, Cipriano, como em Clemente, descobrimos os germes ou começos inocentes (sic!) do Papado", p. 305.

Poderia excogitar-se antilogia mais escandalosa? Mistérios da lógica protestante!

Mas façamos ponto final. Assim se vinga a verdade: estigmatizando o erro com o ferrete indelével da contradição.
___

61. Não me dei ao trabalho de verificar DU PIN. O leitor já sabe que há dois escritores desse nome; ambos deixaram várias obras. O Sr. CARLOS PEREIRA, como de costume, dispensa-se de citações exatas. Alexandre! Há tantos Alexandres nesse mundo! Mas contra o indefeso BELARMINO é certo que ainda uma vez levanta o Sr. CALOS PEREIRA aleive inqualificável. BELARMINO nos quatro primeiros séculos não encontrou referência ou alusão à dignidade pontifícia do bispo de Roma? E onde o leu o clarividente crítico? Tome a obra De Controversiis do grande Cardeal; abra o Tomo I, Controversia III, De Romano Pontifice, caps. 14, 25 e 16. Aí verá que, em favor da dignidade pontifical do bispo de Roma, dentro os escritores dos quatro primeiro séculos, cita BELARMINO 6 testemunhos autênticos de pontífices (c. 14), 7 de escritores gregos (c. 15) e 5 de escritores latinos (c. 16); ao todo, 18 preciosos documentos (em complexo cita BELARMINO 58 testemunhos da antiguidade, mas os outros são posteriores ao séc. IV). - Como explicar tão audaciosa falsificação? Não posso acabar comigo que o gramático levasse em ânimo adulterar acinte as obras do eminente apologista da Igreja, ele, todo zelo em assoalhar "a fraude colossal das Falsas Decretais" que sancionaram "as ambições descomunais dos papas", p. 317. Não resta senão apelar para a prodigiosa faculdade psicológica, que já lhe conhecemos, de citar e confutar autores católicos sem nunca os haver lido. Pena, que a crítica irreverente nem sempre respeita estas portentosas intuições do livre exame.___

Pg.130/131

PARALOGISMOS E ILOGISMOS 



Nenhum comentário:

Postar um comentário