O protestantismo foi o último galho lascado da árvore católica. Seus restos cobrem ainda larga parte da Europa setentrional. Aos olhos de observadores superficiais apresenta ainda o viço de uma verdura luxuriante. Mas são apenas folhas. Flores e frutos já os não produz. A mesma infecundidade moral que esterilizou as outras revoltas religiosas feriu também a do monge saxônio. Procurai os santos do protestantismo em quatro séculos de existência, inquiri do heroísmo dos seus filhos, investigai-lhe os milagres que são sigilo da divindade; não encontrareis, sob estes títulos, senão páginas em branco. Homens honestos, virtudes cristãs que não transcendem os limites da mediocridade, é o mais que nos podem oferecer os seus anais. A graça, nos segredo insondáveis da sua ação sobrenatural, pode ainda fecundar a boa fé e a intenção reta dos extraviados. Mas o segredo do heroísmo cristão, esse perdeu-se para as almas de escol, enquanto as grandes massas, destruídas as barreiras preservadoras, se precipitaram, sob a impetuosidade torrencial das paixões, nos grandes excessos, que cedo ou tarde acarretam a completa dissolução da vida moral e religiosa.
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 372/373
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LIVRO III
A IGREJA, A REFORMA E A CIVILIZAÇÃO
Capítulo III
A IGREJA, A REFORMA E MORAL
§ 1. - A moral nas doutrinas da Reforma.
SUMÁRIO - Introdução: a santidade na Igreja católica. Doutrinas morais da Reforma: ausência de princípios intelectuais; determinismo fatalista: dogmas negados; dogmas afirmados.
Com a moral entramos diretamente no campo da influência religiosa. Se outras houvessem sido na história as condições econômicas e intelectuais da humanidade, o cristianismo pudera ter atingido a plenitude do seu desenvolvimento religioso sem todas essas criações admiráveis que lhe constituem outros tantos títulos de glória nos fastos da civilização terrena. Mas a sua eficácia moralizadora, essa é-lhe essencial aos princípios de santidade, intrínseca à natureza de sua missão divina. Santificar os homens, arrancá-los às estreitezas do egoísmo estéril, elevá-los, pela prática da virtude, à altura do ideal cristão é o fim primeiro do Evangelho, é o campo natural onde se exerce a ação poderosamente benfazeja da verdade católica. Santa na sua origem, santa na Pessoa divina do seu fundador, santa na essência de sua constituição, santa na pureza ilibada da sua fé e dos seus ensinamento morais, a Igreja católica conserva sempre o segredo de santificar a humanidade decaída; santa, é mãe fecunda de santos.
Estorvada pelos abusos da liberdade humana, pelo influxo deletério do ambiente social, pela revolta das paixões desencadeadas, pelas ingerências do poder civil, ela triunfou sempre, em muitos dos seus filhos, de todas essas influências do mal.
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Seus membros não foram nem são todos santos; são homens. Desdobrai as páginas da sua história. Podereis apontar épocas funestas em que os vícios do mundo contaminaram largamente as suas fileiras; podereis indicar mosteiros ou instituições religiosas que, esquecidas da perfeição evangélica, decaíram ao nível das paixões vulgares; podereis numerar sacerdotes ou bispos que mancharam o santuário com o exemplo de uma vida desregrada; podereis até contar (são raros!) Pontífices supremos que escandalizaram com os seus desmandos a cátedra apostólica, onde luziram as virtudes de Leão Magno, Gregório VII e Pio V. Cristo o havia profetizado. Na seara por ele plantada, ao lado do trigo havia de crescer o joio; na pesca divina das almas, entre as malhas da rede, se haviam de encontrar peixes bons e maus. A figueira estéril cresceria ao lado da árvore frutífera, as virgens loucas se irmanariam com as prudentes, Judas maquinaria o deicídio no colégio apostólico. São essas as taras inevitáveis de uma sociedade, divina na sua instituição, mas humana nos seus membros.
Ao lado, porém, destas obscuridades que formam a sombra do quadro, que luzes, que resplendores sobre-humanos! Enumerai em vinte séculos de civilização os grandes heróis da virtude, os grandes benfeitores da humanidade, as grandes instituições que deram ao mundo o mais belo espetáculo da abnegação, do sacrifício, do zelo e do amor: são frutos sazonados da seiva vivificadora da grande árvore católica. A tradição do heroísmo nunca se extinguiu na raça dos seus filhos. A chama da caridade nunca se apagou no seu seio. As árduas veredas da perfeição evangélica nunca deixaram de ser trilhadas pela legiões dos seus soldados.
De Estêvão aos negros da Uganda contemporânea, os fastos do seu martirológio; de Jerusalém a Lourdes, a crônica dos seus milagres; dos Apóstolos às legiões dos nossos missionários, a história do zelo; dos diáconos da Palestina e dos anacoretas da Tebaida a Vicente de Paulo, a D. Bosco, às multidões das nossas virgens e dos nossos virgens, os fatos da caridade, da abnegação, da pureza, foram continuamente iluminados pelo brilho de novas páginas.
A maternidade fecunda da Igreja nas gerações dos seus santos não conheceu nunca as intermitências do exaurimento ou a impotência da esterilidade.
Mas desta árvore divina, nas tempestades de 20 séculos, destacaram-se dezenas de ramos outrora florescentes e carregados de frutos. O orgulho, revolta do espírito, e a sensualidade, revolta da carne, separaram-nos do tronco comum. Caíram, muitos com grande
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estrondo e por algum tempo - (que montam poucos séculos na grandeza dos planos divinos?) vegetam no solo com os restos de uma vitalidade decadente. Mas, sem húmus e sem seiva, secou-os primeiro a esterilidade, desagregou-0s depois a corrupção da morte. É a história de todas as heresias.
O protestantismo foi o último galho lascado da árvore católica. Seus restos cobrem ainda larga parte da Europa setentrional. Aos olhos de observadores superficiais apresenta ainda o viço de uma verdura luxuriante. Mas são apenas folhas. Flores e frutos já os não produz. A mesma infecundidade moral que esterilizou as outras revoltas religiosas feriu também a do monge saxônio. Procurai os santos do protestantismo em quatro séculos de existência, inquiri do heroísmo dos seus filhos, investigai-lhe os milagres que são sigilo da divindade; não encontrareis, sob estes títulos, senão páginas em branco. Homens honestos, virtudes cristãs que não transcendem os limites da mediocridade, é o mais que nos podem oferecer os seus anais. A graça, nos segredo insondáveis da sua ação sobrenatural, pode ainda fecundar a boa fé e a intenção reta dos extraviados. Mas o segredo do heroísmo cristão, esse perdeu-se para as almas de escol, enquanto as grandes massas, destruídas as barreiras preservadoras, se precipitaram, sob a impetuosidade torrencial das paixões, nos grandes excessos, que cedo ou tarde acarretam a completa dissolução da vida moral e religiosa.
É esta decadência do protestantismo que ora nos cumpre esboçar. Distinguiremos no nosso estudo duas questões: a questão de direito e a questão de fato. Analisando abstratamente os princípios, provaremos primeiro a incapacidade profunda e insanável em que se acha o protestantismo de promover a grandeza moral dos que o abraçaram e confirmaremos, em seguida, com o exame dos fato, a verdade das nossas conclusões teóricas.
Estorvada pelos abusos da liberdade humana, pelo influxo deletério do ambiente social, pela revolta das paixões desencadeadas, pelas ingerências do poder civil, ela triunfou sempre, em muitos dos seus filhos, de todas essas influências do mal.
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Ao lado, porém, destas obscuridades que formam a sombra do quadro, que luzes, que resplendores sobre-humanos! Enumerai em vinte séculos de civilização os grandes heróis da virtude, os grandes benfeitores da humanidade, as grandes instituições que deram ao mundo o mais belo espetáculo da abnegação, do sacrifício, do zelo e do amor: são frutos sazonados da seiva vivificadora da grande árvore católica. A tradição do heroísmo nunca se extinguiu na raça dos seus filhos. A chama da caridade nunca se apagou no seu seio. As árduas veredas da perfeição evangélica nunca deixaram de ser trilhadas pela legiões dos seus soldados.
De Estêvão aos negros da Uganda contemporânea, os fastos do seu martirológio; de Jerusalém a Lourdes, a crônica dos seus milagres; dos Apóstolos às legiões dos nossos missionários, a história do zelo; dos diáconos da Palestina e dos anacoretas da Tebaida a Vicente de Paulo, a D. Bosco, às multidões das nossas virgens e dos nossos virgens, os fatos da caridade, da abnegação, da pureza, foram continuamente iluminados pelo brilho de novas páginas.
A maternidade fecunda da Igreja nas gerações dos seus santos não conheceu nunca as intermitências do exaurimento ou a impotência da esterilidade.
Mas desta árvore divina, nas tempestades de 20 séculos, destacaram-se dezenas de ramos outrora florescentes e carregados de frutos. O orgulho, revolta do espírito, e a sensualidade, revolta da carne, separaram-nos do tronco comum. Caíram, muitos com grande
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O protestantismo foi o último galho lascado da árvore católica. Seus restos cobrem ainda larga parte da Europa setentrional. Aos olhos de observadores superficiais apresenta ainda o viço de uma verdura luxuriante. Mas são apenas folhas. Flores e frutos já os não produz. A mesma infecundidade moral que esterilizou as outras revoltas religiosas feriu também a do monge saxônio. Procurai os santos do protestantismo em quatro séculos de existência, inquiri do heroísmo dos seus filhos, investigai-lhe os milagres que são sigilo da divindade; não encontrareis, sob estes títulos, senão páginas em branco. Homens honestos, virtudes cristãs que não transcendem os limites da mediocridade, é o mais que nos podem oferecer os seus anais. A graça, nos segredo insondáveis da sua ação sobrenatural, pode ainda fecundar a boa fé e a intenção reta dos extraviados. Mas o segredo do heroísmo cristão, esse perdeu-se para as almas de escol, enquanto as grandes massas, destruídas as barreiras preservadoras, se precipitaram, sob a impetuosidade torrencial das paixões, nos grandes excessos, que cedo ou tarde acarretam a completa dissolução da vida moral e religiosa.
É esta decadência do protestantismo que ora nos cumpre esboçar. Distinguiremos no nosso estudo duas questões: a questão de direito e a questão de fato. Analisando abstratamente os princípios, provaremos primeiro a incapacidade profunda e insanável em que se acha o protestantismo de promover a grandeza moral dos que o abraçaram e confirmaremos, em seguida, com o exame dos fato, a verdade das nossas conclusões teóricas.
Na ordem natural e na ordem sobrenatural a Reforma protestante golpeou de morte os órgãos vitais da moralidade humana e do moralidade cristã.
Na ordem natural, são dois os elementos fundamentais da grandeza de caráter: princípios sólidos e imutáveis a iluminar as alturas da inteligência, força e constância de querer a fortificar as energias da liberdade. Sem a firmeza das verdades eternas que lhe fixam o
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ideal na corrente movediça das coisas que passam, o homem vive, ou, melhor, flutua à mercê dos acontecimentos. Cada capricho que lhe cruza pelo espírito, inspira-lhe uma resolução passageira, cada paixão, que lhe estua na alma, imprime uma orientação efêmera à sua atividade. No conflito dos apetites contraditórios nenhuma ordem, nenhuma harmonia de tendências, nenhuma subordinação hierárquica de faculdades. É nesta hesitação vacilante acerca dos grandes princípios moderadores da atividade humana que devemos procurar a causa primeira da crise de caracteres de que adoece a nossa civilização. JOUFFROY: "Personne n'a du caractère dans ce temps et par une bonne raison, c'est que des deux éléments dont le caractère se compose, une volonté ferme et des principes arrêtes, le second manque et rend inutile le premier".
Foi o protestantismo o primeiro a abalar nas almas a estabilidade das convicções. Perguntai ao protestante qual o princípio regulador da sua atividade moral. - A Bíblia, responderá, a Bíblia, única regra dos costumes como norma única de fé. - Mas Bíblia quem a interpreta? A razão individual. Se vos apraz, podereis ver no livro divino, com LUTERO, a condenação da virgindade, a justificação da poligamia, a inutilidade das boas obras. A razão, pois, a razão subjetiva e mutável ao sabor das paixões, eis, em última análise, a regra de nosso operar.
As massas, desvinculadas assim da submissão a uma autoridade superior e incapazes de deduzir pessoalmente do livro inspirado um código de moral, deixar-se-ão levar pela torrente avassaladora dos apetites desregrados.
O cultos, os intelectuais, vagando à mercê das variações da crítica racionalista, erigirão os próprio preconceitos em mandamentos éticos, construirão uma moral "independente" e oscilante sobre a areia movediça dos sistemas filosóficos. Para o jovem inebriado com os primeiros fumos da ciência, as regras aprendidas e praticadas na infância já não apresentam a solidez racional capaz de resistir aos embates críticos dos moderníssimos mestres do pensamento. O homem maduro achará levianas e superficiais as conclusões assentadas nos fervores entusiastas da juventude. Ao velho experimentado e desiludido afigurar-se-ão inconsistentes e eivadas de orgulho as construções morais de sua virilidade.
Destarte, de povo para povo, de época para época, de indivíduo para indivíduo, de idade para idade, o princípios morais variarão com a índole, com os caprichos da moda intelectual, com as paixões que agitam e diversificam as massas humanas no espaço e no tempo.
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O protestantismo em quatro séculos de existência, como não logrou assentar uma confissão de fé que reunisse o sufrágio universal das inteligências, assim não conseguiu estabelecer um código de moral que se impusesse à submissão de todas as vontades. A sua moralidade furta-cor, seu preceituário de mil fórmulas cambiantes, os seus mandamentos entregues à versatilidade interesseira do egoísmo, arvorado em norma suprema de ação, comprometeram irremediavelmente no domínio intelectual a eficácia regeneradora dos grandes e imutáveis princípio do cristianismo.1
Na ordem natural, são dois os elementos fundamentais da grandeza de caráter: princípios sólidos e imutáveis a iluminar as alturas da inteligência, força e constância de querer a fortificar as energias da liberdade. Sem a firmeza das verdades eternas que lhe fixam o
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Foi o protestantismo o primeiro a abalar nas almas a estabilidade das convicções. Perguntai ao protestante qual o princípio regulador da sua atividade moral. - A Bíblia, responderá, a Bíblia, única regra dos costumes como norma única de fé. - Mas Bíblia quem a interpreta? A razão individual. Se vos apraz, podereis ver no livro divino, com LUTERO, a condenação da virgindade, a justificação da poligamia, a inutilidade das boas obras. A razão, pois, a razão subjetiva e mutável ao sabor das paixões, eis, em última análise, a regra de nosso operar.
As massas, desvinculadas assim da submissão a uma autoridade superior e incapazes de deduzir pessoalmente do livro inspirado um código de moral, deixar-se-ão levar pela torrente avassaladora dos apetites desregrados.
O cultos, os intelectuais, vagando à mercê das variações da crítica racionalista, erigirão os próprio preconceitos em mandamentos éticos, construirão uma moral "independente" e oscilante sobre a areia movediça dos sistemas filosóficos. Para o jovem inebriado com os primeiros fumos da ciência, as regras aprendidas e praticadas na infância já não apresentam a solidez racional capaz de resistir aos embates críticos dos moderníssimos mestres do pensamento. O homem maduro achará levianas e superficiais as conclusões assentadas nos fervores entusiastas da juventude. Ao velho experimentado e desiludido afigurar-se-ão inconsistentes e eivadas de orgulho as construções morais de sua virilidade.
Destarte, de povo para povo, de época para época, de indivíduo para indivíduo, de idade para idade, o princípios morais variarão com a índole, com os caprichos da moda intelectual, com as paixões que agitam e diversificam as massas humanas no espaço e no tempo.
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Mais profundo ainda foi o golpe vibrado contra a vontade. O espírito, desenfreara-o LUTERO com o livre exame; a liberdade, encadeou-a nos elos de um determinismo fatal. Esse homem, que uma crítica míope pertinazmente hostil à Igreja proclamou o arauto das liberdades humanas, o emancipador dos povos livres, professa as teorias mais degradantes acerca do livre arbítrio, rebaixa a dignidade da nossa natureza ao nível do bruto, ao mecanismo inconsciente dos autômatas.
Para a Igreja católica o homem é livre. O pecado original vulnerou-lhe a prerrogativa divina, mas não a destruiu. Na revolta das paixões desencadeadas pela primeira prevaricação, na insurreição da concupiscência e dos apetites inferiores contra os ditames superiores do espírito, a vontade debilitada sim, mas não aniquilada, conservou na sua decadência o cetro da realeza primitiva. Ela é ainda rainha o homem é ainda senhor de seus atos e, pela liberdade, o artífice dos seus destinos. A graça eleva, fortifica, sobrenaturaliza a vontade, mas no segredo insondável de sua ação nas almas, respeita-lhe sempre a independência nativa. A felicidade suprema da glória será conquista dos nossos esforços, prêmio das nossas virtudes, triunfo de nossa liberdade sobre o mal. As palavras de S. Paulo: gratia Dei mecum, resumem admiravelmente toda a economia da predestinação divina. Deus e eu: Deus com a sua graça, e, com a minha livre cooperação: eis os elementos essenciais e inseparáveis da nossa glorificação sobrenatural. Não se poderia melhor conciliar a gratuidade das generosidades divinas com a grandeza da dignidade humana.
À verdade destas doutrinas que elevam, opôs LUTERO as degradações do erro que avilta. Aos estudos católicos sobre a liberdade
1. "L'homme est toujors disposé à échapper à la morale, et il Y échappe quand cette morale n'1est pas liée à une doctrine invariable". DE GROGLIE, Problèmes et conclusions de l'histoire des religions
(2), Paris, 1886, pp. 115-16.
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contrapôs um livro desmoralizador e intitulou-o De servo arbitrio, do arbítrio escravo. Para envilecer o homem era mister começar por desengastar-lhe do diadema a mais preciosa das suas jóias. Mas ouvi as suas próprias palavras: "A vontade do homem é semelhante a um jumento. Cavalga-o Deus? Ela vai aonde Deus a guia. Monta-lhe em cima o diabo? Ela vai aonde ele a conduz... Tudo se realiza segundo os decretos imutáveis de Deus. Deus opera em nós o mal e o bem. Tudo quanto fazemos, fazêmo-lo não livremente, mas por pura necessidade".
Os discípulos fazem eco à palavra do mestre. CALVINO: "Deus criou alguns para a condenação e morte eterna a fim de serem instrumentos de sua ira e exemplos da sua severidade, a fim de que cheguem a esse destino... cega-os e endurece-os". "Se ele determinou salvar-nos, a seu tempo nos levará à salvação; se determinou condenar-nos em vão nos atormentaríamos para nos salvarmos".3
"Deus é o primeiro princípio do pecado. É por necessidade que o homem comete todos os crimes".4
MELANCHTHON: "A predestinação divina tira ao homem a liberdade porque tudo acontece segundo os seus decretos... e isto entende-se não só das obras externas mas ainda dos internos pensamentos". E,. levando a doutrina às mais execrandas, porém, lógicas conclusões, não hesita em afirmar que "o adultério de David e a traição de Judas, são obra de Deus como a conversão de S. Paulo".5 - Deus, autor do mal, o homem joguete inconsciente dos seus arbítrios, tal o resumo da doutrina protestante. Nunca a blasfêmia e a indignidade, o ultrage à santidade divina e à grandeza humana concluíram mais revoltante conspiração.
;2. De servo arbitrio ad Erasmum (1525), Weimar, XVIII, 635, 709 ss. "Foi o diabo quem introduziu na Igreja o nome de livre arbítrio". Weimar, VII, 145.
3.CALVINUS, Inst. de la relig. Crét., 1. III, c. 24, n. 12; c. 23, n. 12, Opera, IV, 521, 500. Todo o cap. 2 do livro II é consagrado a demonstrar "que l'homme est maintenant dépouillé de franc-abrbitre et misérablement assujetti à tout mal". Opera, III,m 296.
4. ZWINGLIO, Werke, II, 73, 184.
5. MELANCHTHON, comment. in Epist. Ad. Rom.Vertodo o trecho em ALZOG, Universalgeschchte der Chistlichen Kirche(7) Mainz, 1860, p. 755. - Este trecho escandaloso, conservado por CHEMMITZ, foi expungido das edições posteriores do comentário de MELANCHTHON. - Nos Loci theologici, obra que LUTERO chamou "invencível, digna não só da imortalidade senão ainda de ser inserida no cânon das sagradas Escritura" (Weimar, XVIII, 601), MELANCHTHON diz-nos que a liberdade "é um dogma ímpio infiltrado no cristianismo pela filosofia". Corp. Ref. XXI, 86. Mais tarde, desvinculado da influência do artigo mestre e ensinado pela experiência, o reformador humanista acolheu-se a idéias mais sensatas. - As fórmulas simbólicas do protestantismo ressentem-se das opiniões individuais dos teólogos que as elaboram. Para umas, a liberdade é um fato, para outras, um nome oco, sem realidade. Negação do livre arbítrio pode ver-se, por exemplo, na solida declaratio, II, De lib. arb. §§ 5, 7, 30, 44; nos Artigos de Smalcalda, Part. III, Art. I § 5. J; T. MÜLLER, Die wymbolischen bucher der evangelisch-luterischn Kirche(9), Gütersloh, 1900, respectivamente, pp. 588, 589, 596, 598, 311.
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E aí temos como Lutero e os seus aniquilam o valor da personalidade. Sem livre arbítrio não há imputabilidade, não há mérito, não há moralidade. Em tudo o que se refere a sua atividade moral, o homem não passa de uma "estátua", de um "tronco inerte", de uma "pedra". São ainda comparações do chefe reformador, que considerava este artigo da vontade escrava como a quinta essência, a fina flor da sua doutrina, "omnium optimus, et rerum nostrarum summa".6 Após 15 séculos de liberdade cristã eis-nos novamente precipitados na escravidão do fatalismo antigo.7
Depois de haver assim na ordem humana desorganizado as duas grandes molas da vida moral, substituindo na inteligênica a estabilidade dos princípios pela arbitrariedade do capricho e enervando a vontade com declará-la radicalmente incapaz de praticar a virtude, na sua freima demolidora atiraram-se os corifeus da Reforma sobre o edifício sobrenatural dos nossos dogmas e, um por um, destruíram os mais divinamente consoladores.
Com todo o peso de sua divina autoridade, Cristo impôs ao gênero humano o jugo austero da sua moral imaculada. Ao homem decaído que se revolvia no lodo dos vícios mais abjetos, dirigiu a voz taumaturga da regeneração: sursum, para o alto! Eleva-te a rivalizar com os anjos na pureza da vida! Mas ele bem conhecia a fragilidade da nossa argila, as profundezas do abismo em que nos precipitara o pecado e por isso adoçou as severidades do dever com as suavidades do amor.
6. Weimar, VII, 148. Cfr. J. T. MÜLLER, Die Symbolischen Bücher, p. 593.
7. Quereis ver ainda até a que baixeza o homem é degradado na pena de LUTERO? Lede esta página que peço desculpas ao leitor de transcrever em toda a nudez cínica do seu realismo cru: "sei que se alguém experimentou o temor e o peso da morte prefirira ser um porco a ver-se continuamente acabrunhdo pelo vexame de semelhante opressão. Na sua lama, o suíno julga-se num leito de plumas; descansa pacificamente, ronca suavemente, dorme tranquilamente; não teme reis nem senhores, morte nem inferno, demônio nem cólera divina; não o agita a menor preocupação, não se inquieta mesmo com a bolota que há de comer. E se o sultão de todas as Turquias acertasse de passar-lhe ao lado no fasto do seu poder e de sua realeza, ele conservaria toda a sua altivez e não sacudiria em sua honra uma só das suas cerdas. Se o enxotam, solta um grunhido, e se pudera falar diria: Pobre insensato, por que te irritas? Não tens a décima parte da minha felicidade, não passarás nunca uma só hora tão tranquila, tão suave, tão calma, como todas as minhas, ainda que foras dez vezes mais rico e poderoso. Numa palavra, o porco vive numa segurança completa, sua vida é toda doçuras. Se o levam para o matadouro, pensa simplemente que é um tronco de madeira ou uma pedra que o incomoda. Até morrer, não espera a morte. Antes, no momento e depois da morte, não experimenta o que é morrer; a vida lhe pareceu sempre boa e eterna. Neste ponto, nenhum rei, nem mesmo o messias dos judeus (o que eles ainda esperam), homem algum por mais hábil, rico, santo e poderoso, o poderá imitar". Ap. PAQUIER, Luther et le luthéranisme, t. II, pp. 10-11. Nos inquilinos das pocilgas achou o reformador o ideal da felicidade! Hino agora ao emancipador da dignidade humana, palmas ao libertador das consciências!
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 380
Ao lado de cada espinho fez desabrochar uma rosa. vigorizou as pusilanimidades do nosso abatimento com os raios vivificantes da esperança. Sobre a nossa esterilidade auriu, aos borbotões as fontes perenes da sua graça. O protestantismo revoltado não teve fé nos excessos da caridade divina e, com a negação, introduziu a desordem nos planos admiráveis da economia salvadora.
Que de mais confortante para o miserável pecador que o dogma das indulgências? Que de mais consolador que o dogma do purgatório onde se purificam as almas dos justos das nódoas contraídas na sua peregrinação terrena? Que de mais justo e misericordioso que a diferença entre o pecado mortal e o venial, a estabelecer uma distinção entre os crimes que nos matam na alma a vida divina da graça e as faltas a que não pode subtrair a nossa fragilidade? Que de mais suave que a comunhão dos santos, a instituir na ordem sobrenatural esta solidariedade, em virtude da qual somos fortificados pela intercessão e pelo mérito de nossos irmãos? O protestantismo levantou o alvião sacrílego contra todas estas admiráveis construções do amor divino. De todas elas não restam senão ruínas acumuladas pela negação destruidora.
Mas de todas as invenções da misericórdia encarnada não há outras que tão de perto toquem a nossa vida moral e tão intimamente se prendam ao coração do cristianismo como a confissão e a eucaristia.
A confissão é o arrependimento, é o perdão, é o propósito. O arrependimento que apaga um passado de culpas, o perdão que verte sobre o presente, o bálsamo das suas consolações inefáveis, o propósito que ilumina o futuro com as perspectivas da regeneração. Que alavanca mais poderosa para a atividade moral? Lançar frequentemente nas consciências a sonda de um exame imparcial, resgatar com lágrimas sinceras os desvarios da nossa liberdade, firmar as energias do nosso querer com o vigor das resoluções incondicionadas, abrir toda a alma às influências reabilitadoras da graça, aos raios da esperança, à tranquilidade fecunda da paz de consciência - haverá humanamente falando, divinamente falando, meio mais eficaz para elevar, conservar o coração nas regiões serenas da virtude?
O protestantismo negou tudo isto, e negado-o "desconheceu um dos meios mais suaves para dar à vida do homem uma orientação conforme aos princípio da sã moral".8 Pecaste? Persuade-te que Deus te perdoou, que a sua justiça cobre os teus pecados, que a tua fé é inamissível e, com a fé, a graça.
8. BALMES, El protestantismo, etc., c. 30.
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 381
Se esta persuasão entrou na alma é o descanso no pecado, o hábito do mal, o endurecimento; se não, é o terror, o desespero. Compreendo agora em lábios protestantes estes gritos d'alma: "Oh! Que não daria eu para ajoelhar-me num confessionário católico!" (M. DE STAEL). Quem não lançou olhos invejosos ao tribunal da penitência nas amarguras do remorso, nas incertezas do perdão divino, ouvir uns lábios, que, com o poder de Cristo, lhe dissessem: "Vai em paz, teus pecados te são perdoados"?9
A confissão é o amor, que perdoa e regenera. A eucaristia é o amor que se imola, o amor que se comunica às almas nos amplexos inefáveis de uma união divina. Quem não teve fé no amor misericordioso, não pôde compreender o amor unitivo. Negada a confissão, como afirmar a eucaristia? LUTERO também aqui deu o primeiro passo na via das negações. A hóstia consagrada não é o corpo de Cristo, contém-no apenas transitoriamente. CALVINO foi além e no mistério dos nossos altares viu, não uma realidade consoladora, mas apenas um símbolo, uma figura vazia de verdade. Daí à negação completa a distância era pequena e transpuseram-na logo os seus sucessores. A missa foi proscrita como rito idolátrico e os tabernáculos ficaram vazios na solidão dos templos protestantes.
Mas que vale um cristianismo sem eucaristia: sem a eucaristia-sacrifício, centro em torno do qual gravita toda a vida litúrgica sem a eucaristia-sacramento, fonte donde emana, em torrentes, a graça, vida sobrenatural dos crentes? Extinguiram o fogo; o amor entibiou-se nos corações. Estancaram os mananciais; as almas esterilizaram-se. As flores mais belas, que no cristianismo haviam desabrochado ao sol de Jesus-Hóstia, feneceram à míngua de calor e de luz. Murcharam os lírios, esmaeceram as rosas, secaram as violetas. O sacerdócio casou-se, os mosteiros despovoaram-se, o apostolado mercantilizou-se, a caridade exilada das almas buscou um refúgio e passou do coração para a algibeira. O protestantismo não tem Irmãzinhas dos pobres, Irmãos de S. Vicente, não tem ordens religiosas, não tem ministros continentes, não tem legiões de mártires nem de virgens. Onde quer que a virtude se eleva à altura do heroísmo,não achou discípulos entre os descendentes de LUTERO.
9. E. NAVILLE, Thèse defendue davant l'Academie de Benève, 1839. Cit. por E. DUPLESSY, Les apologistes ou dix-newvième siècle(7), Paris, Beauchesne, 1910, p. 238.
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 382
O heroísmo cristão alimenta-se no sangue generoso de Cristo.
Para a Igreja católica o homem é livre. O pecado original vulnerou-lhe a prerrogativa divina, mas não a destruiu. Na revolta das paixões desencadeadas pela primeira prevaricação, na insurreição da concupiscência e dos apetites inferiores contra os ditames superiores do espírito, a vontade debilitada sim, mas não aniquilada, conservou na sua decadência o cetro da realeza primitiva. Ela é ainda rainha o homem é ainda senhor de seus atos e, pela liberdade, o artífice dos seus destinos. A graça eleva, fortifica, sobrenaturaliza a vontade, mas no segredo insondável de sua ação nas almas, respeita-lhe sempre a independência nativa. A felicidade suprema da glória será conquista dos nossos esforços, prêmio das nossas virtudes, triunfo de nossa liberdade sobre o mal. As palavras de S. Paulo: gratia Dei mecum, resumem admiravelmente toda a economia da predestinação divina. Deus e eu: Deus com a sua graça, e, com a minha livre cooperação: eis os elementos essenciais e inseparáveis da nossa glorificação sobrenatural. Não se poderia melhor conciliar a gratuidade das generosidades divinas com a grandeza da dignidade humana.
À verdade destas doutrinas que elevam, opôs LUTERO as degradações do erro que avilta. Aos estudos católicos sobre a liberdade
1. "L'homme est toujors disposé à échapper à la morale, et il Y échappe quand cette morale n'1est pas liée à une doctrine invariable". DE GROGLIE, Problèmes et conclusions de l'histoire des religions
(2), Paris, 1886, pp. 115-16.
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contrapôs um livro desmoralizador e intitulou-o De servo arbitrio, do arbítrio escravo. Para envilecer o homem era mister começar por desengastar-lhe do diadema a mais preciosa das suas jóias. Mas ouvi as suas próprias palavras: "A vontade do homem é semelhante a um jumento. Cavalga-o Deus? Ela vai aonde Deus a guia. Monta-lhe em cima o diabo? Ela vai aonde ele a conduz... Tudo se realiza segundo os decretos imutáveis de Deus. Deus opera em nós o mal e o bem. Tudo quanto fazemos, fazêmo-lo não livremente, mas por pura necessidade".
Os discípulos fazem eco à palavra do mestre. CALVINO: "Deus criou alguns para a condenação e morte eterna a fim de serem instrumentos de sua ira e exemplos da sua severidade, a fim de que cheguem a esse destino... cega-os e endurece-os". "Se ele determinou salvar-nos, a seu tempo nos levará à salvação; se determinou condenar-nos em vão nos atormentaríamos para nos salvarmos".3
"Deus é o primeiro princípio do pecado. É por necessidade que o homem comete todos os crimes".4
MELANCHTHON: "A predestinação divina tira ao homem a liberdade porque tudo acontece segundo os seus decretos... e isto entende-se não só das obras externas mas ainda dos internos pensamentos". E,. levando a doutrina às mais execrandas, porém, lógicas conclusões, não hesita em afirmar que "o adultério de David e a traição de Judas, são obra de Deus como a conversão de S. Paulo".5 - Deus, autor do mal, o homem joguete inconsciente dos seus arbítrios, tal o resumo da doutrina protestante. Nunca a blasfêmia e a indignidade, o ultrage à santidade divina e à grandeza humana concluíram mais revoltante conspiração.
;2. De servo arbitrio ad Erasmum (1525), Weimar, XVIII, 635, 709 ss. "Foi o diabo quem introduziu na Igreja o nome de livre arbítrio". Weimar, VII, 145.
3.CALVINUS, Inst. de la relig. Crét., 1. III, c. 24, n. 12; c. 23, n. 12, Opera, IV, 521, 500. Todo o cap. 2 do livro II é consagrado a demonstrar "que l'homme est maintenant dépouillé de franc-abrbitre et misérablement assujetti à tout mal". Opera, III,m 296.
4. ZWINGLIO, Werke, II, 73, 184.
5. MELANCHTHON, comment. in Epist. Ad. Rom.Vertodo o trecho em ALZOG, Universalgeschchte der Chistlichen Kirche(7) Mainz, 1860, p. 755. - Este trecho escandaloso, conservado por CHEMMITZ, foi expungido das edições posteriores do comentário de MELANCHTHON. - Nos Loci theologici, obra que LUTERO chamou "invencível, digna não só da imortalidade senão ainda de ser inserida no cânon das sagradas Escritura" (Weimar, XVIII, 601), MELANCHTHON diz-nos que a liberdade "é um dogma ímpio infiltrado no cristianismo pela filosofia". Corp. Ref. XXI, 86. Mais tarde, desvinculado da influência do artigo mestre e ensinado pela experiência, o reformador humanista acolheu-se a idéias mais sensatas. - As fórmulas simbólicas do protestantismo ressentem-se das opiniões individuais dos teólogos que as elaboram. Para umas, a liberdade é um fato, para outras, um nome oco, sem realidade. Negação do livre arbítrio pode ver-se, por exemplo, na solida declaratio, II, De lib. arb. §§ 5, 7, 30, 44; nos Artigos de Smalcalda, Part. III, Art. I § 5. J; T. MÜLLER, Die wymbolischen bucher der evangelisch-luterischn Kirche(9), Gütersloh, 1900, respectivamente, pp. 588, 589, 596, 598, 311.
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Depois de haver assim na ordem humana desorganizado as duas grandes molas da vida moral, substituindo na inteligênica a estabilidade dos princípios pela arbitrariedade do capricho e enervando a vontade com declará-la radicalmente incapaz de praticar a virtude, na sua freima demolidora atiraram-se os corifeus da Reforma sobre o edifício sobrenatural dos nossos dogmas e, um por um, destruíram os mais divinamente consoladores.
Com todo o peso de sua divina autoridade, Cristo impôs ao gênero humano o jugo austero da sua moral imaculada. Ao homem decaído que se revolvia no lodo dos vícios mais abjetos, dirigiu a voz taumaturga da regeneração: sursum, para o alto! Eleva-te a rivalizar com os anjos na pureza da vida! Mas ele bem conhecia a fragilidade da nossa argila, as profundezas do abismo em que nos precipitara o pecado e por isso adoçou as severidades do dever com as suavidades do amor.
6. Weimar, VII, 148. Cfr. J. T. MÜLLER, Die Symbolischen Bücher, p. 593.
7. Quereis ver ainda até a que baixeza o homem é degradado na pena de LUTERO? Lede esta página que peço desculpas ao leitor de transcrever em toda a nudez cínica do seu realismo cru: "sei que se alguém experimentou o temor e o peso da morte prefirira ser um porco a ver-se continuamente acabrunhdo pelo vexame de semelhante opressão. Na sua lama, o suíno julga-se num leito de plumas; descansa pacificamente, ronca suavemente, dorme tranquilamente; não teme reis nem senhores, morte nem inferno, demônio nem cólera divina; não o agita a menor preocupação, não se inquieta mesmo com a bolota que há de comer. E se o sultão de todas as Turquias acertasse de passar-lhe ao lado no fasto do seu poder e de sua realeza, ele conservaria toda a sua altivez e não sacudiria em sua honra uma só das suas cerdas. Se o enxotam, solta um grunhido, e se pudera falar diria: Pobre insensato, por que te irritas? Não tens a décima parte da minha felicidade, não passarás nunca uma só hora tão tranquila, tão suave, tão calma, como todas as minhas, ainda que foras dez vezes mais rico e poderoso. Numa palavra, o porco vive numa segurança completa, sua vida é toda doçuras. Se o levam para o matadouro, pensa simplemente que é um tronco de madeira ou uma pedra que o incomoda. Até morrer, não espera a morte. Antes, no momento e depois da morte, não experimenta o que é morrer; a vida lhe pareceu sempre boa e eterna. Neste ponto, nenhum rei, nem mesmo o messias dos judeus (o que eles ainda esperam), homem algum por mais hábil, rico, santo e poderoso, o poderá imitar". Ap. PAQUIER, Luther et le luthéranisme, t. II, pp. 10-11. Nos inquilinos das pocilgas achou o reformador o ideal da felicidade! Hino agora ao emancipador da dignidade humana, palmas ao libertador das consciências!
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Que de mais confortante para o miserável pecador que o dogma das indulgências? Que de mais consolador que o dogma do purgatório onde se purificam as almas dos justos das nódoas contraídas na sua peregrinação terrena? Que de mais justo e misericordioso que a diferença entre o pecado mortal e o venial, a estabelecer uma distinção entre os crimes que nos matam na alma a vida divina da graça e as faltas a que não pode subtrair a nossa fragilidade? Que de mais suave que a comunhão dos santos, a instituir na ordem sobrenatural esta solidariedade, em virtude da qual somos fortificados pela intercessão e pelo mérito de nossos irmãos? O protestantismo levantou o alvião sacrílego contra todas estas admiráveis construções do amor divino. De todas elas não restam senão ruínas acumuladas pela negação destruidora.
Mas de todas as invenções da misericórdia encarnada não há outras que tão de perto toquem a nossa vida moral e tão intimamente se prendam ao coração do cristianismo como a confissão e a eucaristia.
A confissão é o arrependimento, é o perdão, é o propósito. O arrependimento que apaga um passado de culpas, o perdão que verte sobre o presente, o bálsamo das suas consolações inefáveis, o propósito que ilumina o futuro com as perspectivas da regeneração. Que alavanca mais poderosa para a atividade moral? Lançar frequentemente nas consciências a sonda de um exame imparcial, resgatar com lágrimas sinceras os desvarios da nossa liberdade, firmar as energias do nosso querer com o vigor das resoluções incondicionadas, abrir toda a alma às influências reabilitadoras da graça, aos raios da esperança, à tranquilidade fecunda da paz de consciência - haverá humanamente falando, divinamente falando, meio mais eficaz para elevar, conservar o coração nas regiões serenas da virtude?
O protestantismo negou tudo isto, e negado-o "desconheceu um dos meios mais suaves para dar à vida do homem uma orientação conforme aos princípio da sã moral".8 Pecaste? Persuade-te que Deus te perdoou, que a sua justiça cobre os teus pecados, que a tua fé é inamissível e, com a fé, a graça.
8. BALMES, El protestantismo, etc., c. 30.
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A confissão é o amor, que perdoa e regenera. A eucaristia é o amor que se imola, o amor que se comunica às almas nos amplexos inefáveis de uma união divina. Quem não teve fé no amor misericordioso, não pôde compreender o amor unitivo. Negada a confissão, como afirmar a eucaristia? LUTERO também aqui deu o primeiro passo na via das negações. A hóstia consagrada não é o corpo de Cristo, contém-no apenas transitoriamente. CALVINO foi além e no mistério dos nossos altares viu, não uma realidade consoladora, mas apenas um símbolo, uma figura vazia de verdade. Daí à negação completa a distância era pequena e transpuseram-na logo os seus sucessores. A missa foi proscrita como rito idolátrico e os tabernáculos ficaram vazios na solidão dos templos protestantes.
Mas que vale um cristianismo sem eucaristia: sem a eucaristia-sacrifício, centro em torno do qual gravita toda a vida litúrgica sem a eucaristia-sacramento, fonte donde emana, em torrentes, a graça, vida sobrenatural dos crentes? Extinguiram o fogo; o amor entibiou-se nos corações. Estancaram os mananciais; as almas esterilizaram-se. As flores mais belas, que no cristianismo haviam desabrochado ao sol de Jesus-Hóstia, feneceram à míngua de calor e de luz. Murcharam os lírios, esmaeceram as rosas, secaram as violetas. O sacerdócio casou-se, os mosteiros despovoaram-se, o apostolado mercantilizou-se, a caridade exilada das almas buscou um refúgio e passou do coração para a algibeira. O protestantismo não tem Irmãzinhas dos pobres, Irmãos de S. Vicente, não tem ordens religiosas, não tem ministros continentes, não tem legiões de mártires nem de virgens. Onde quer que a virtude se eleva à altura do heroísmo,não achou discípulos entre os descendentes de LUTERO.
9. E. NAVILLE, Thèse defendue davant l'Academie de Benève, 1839. Cit. por E. DUPLESSY, Les apologistes ou dix-newvième siècle(7), Paris, Beauchesne, 1910, p. 238.
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Não parou nesta primeira negativa a obra nefasta de desmoralização iniciada pela Reforma. Depois de negar, o protestantismo afirmou. Negou todos os dogmas que inspiram, que elevam, que sustentam as almas nas esferas sublimes do sacrifício e do heroísmo. Afirmou em seguida um dogma novo que, em si, encerra o germe não só da corrupção mas da completa dissolução da vida moral. Refiro-me à doutrina protestante da inutilidade das boas obras.
Falando da liberdade, já tivemos ensejo de observar como o dogma católico concilia admiravelmente a gratuidade da graça divina com o exercício da nossa atividade livre. O auxílio de Deus, absolutamente necessário para elevar as nossas ações à ordem sobrenatural, não dispensa de modo nenhum o esforço das nossa cooperação. Nas finezas do seu amor, dispôs Deus que o /homem fosse o artista da sua felicidade.
Destarte, nascidas do conúbio misterioso da graça divina com o livre arbítrio humano, são as nossas ações germe fecundo de vida eterna. Verdade altamente digna da misericórdia de Deus e da grandeza do homem, verdade altamente estimuladora da nossa atividade moral. E a sagrada Escritura no-la ensina frequentemente, inculcando a necessidade das boas obras. Que é o magnífico sermão da montanha senão uma promessa da glória aos que praticam o bem? Que razão da suprema sentença aduzirá Cristo juíz, senão as boas obras praticadas pelos eleitos e descuradas pelos réprobos? Ouvi ao Príncipe dos Apóstolos: "Procurai por meio das boas obras, assegurar a vossa vocação e eleição". I Petr., I, 10. Ouvi a Tiago: "a fé sem obras é morta". Jac., II, 20. Abri os Evangelhos, lede todas as epístolas apostólicas. Desta leitura resultará evidente como a luz meridiana que o cristiaanismo ´um grande código de moral imposto à humanidade para a sua salvação. Cristo é Redentor não só, mas legislador também. Não basta crer, é mister ajustar as obras à fé; não basta o símbolo, é necessário também o decálogo; se vis ad vitam ingredi serva mandata. Math., XIX, 17.
A primeira preocupação de LUTERO e de seus amigos foi alijar a carga pesada das boas obras. Era mister forjar um novo cristianismo
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carrancudo, mais ameno e prazenteiro. "A palavra Evangelho significa boa nova, doutrina grata e consoladora para as almas... ouvir que a Lei já foi observada por Cristo, que nós não a devemos observar, mas só unir-nos pela fé àquele que por nós a observou".10
É a doutrina da justificação pela fé, que, na opinião do heresiarca resume a quinta essência do cristianismo, e, na realidade, é a chave de abóbada e todo o seu sistema teológico. Ei-la em duas palavras.11
O pecado original causou a depravação total do homem. A sua inteligência, nas coisas morais e divinas, não pode senão errar, a sua vontade, por mais que se esforce, não faz senão acumular pecados. E este estado de decadência identifica-se de tal modo com a essência da natureza humana que é impossível uma regeneração interior, uma verdadeira renovação espiritual. Qual será então o efeito da morte redentora de Cristo? Uma justificação simplesmente externa, equivalente a uma não-imputação do pecado. Cristo satisfez por nós, Cristo mereceu-nos o céu com o seus sofrimentos. A generosidade e a abundância de sua Redenção dispensam-nos de qualquer cooperação individual, de qualquer atividade própria, dispensam-nos até o arrependimento e do amor. Para ser justificado basta crer na eficácia do sangue divino. A fé cobre todos os nossos pecado.12
10. Weimar, I, 105. No comentário ao c. 40 de Isaías: "Esta é nossa doutrina que sabemos eficaz para consolar as consciências. Viveremos livres, lsem lei, e nos persuadiremos que os nossos ecados nos foram perdoados", Weimar, XXV, 249.
11. Sobre a teoria da justigficação em LUTERO e a sua dissolução gradual pelas diferentes facções protestantes, cf. J. A. MOEHLER, Symbolik, oder darsllung der dogmatischen Gegensaetze der Katholiken und Protestanten nach ihren oeffentlichen Bekenntnisschriften(9). Mainz, 1884, 1. I, c. 3. pp. 99-253. Desta obra clássica escreu GOYAU: "La Symbolique est le levre le plus profond que, depuis Luther, une plume catholque Allemande ait écrit sur la Réforme" G. GOYAU, Moechler, Paris, Blod, 905, p. 38. Cfr. ainda: J. SCHWANE, Histoire des dogmes, trad. franc. de A. Degert, Paris, Beauchesne, 1904. T. VI,205-239; H. GRISAR, Luther, Freib. i, B., Herder, 1911, t. II, 737-781. Este último autor estuda a teoria de LUTERO à luz das experiências religiosas e lutas internas de consciência desta alma devorada de escrúpulos e ralada de remorsos. Não é a teologia, é a psicologia que explica a origem da justificação luterana.
12. Livro da Concórdia: "Et quidem neque contritio neque dilectio, neque ulla alia virtus, sola fides tamquam medium et instrumentum quo tratiam Dei, meritum Christi et remissionem peccatorum apprendere et accipere possumus". Solida Declaratio, III, De justitia fidei, J. T. MÜHLER, Die symbolischen Bücher Der evangelisch-lutheranishcen Kirche(9),Gütersloh, 1900, p. 616. Na Apologia da Confissão Augustana: "Sola fide in Christum, non per dilectionem, nom propter diletionem at opera consequimur remissionem peccatorum, etsi dilectio sequitur fidem. Igitur sola fide justificamur".
Corp. Reformat., XXVII, 440. Em J. T. MÜHLER, p. 100. LUTERO: "Haec est ardua et insignis dignitas veraque et ominipotens potestas, spirituale imperium in quo nella res tam bona, nulla tam mala quase non in bonum mihi cooperatur. Nulla tamen mihi opus ets cum sola fide sufficiat ad salutem". Weimar, VII, 57.
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Desacompanhada de obras, de contrição e de caridade, ela é o processo mecânico e externo, o instrumento com que nos apropriamos os merecimentos de Cristo, alcançamos a graça e a remissão, ou , mais exatamente, a não-imputação das nossas culpas.
Coberto assim ao olhos de Deus com o manto dos méritos do Redentor (por uma ficção jurídica indigna da santidade divina), o homem continua na realidade e instrinsecamente pecador e fonte contínua de pecados. Todas as suas ações, ainda depois de justificado, são pecaminosas e imundas.13 Mas nenhum pecado, afora o da infidelidade, pode despojá-lo da graça. Se crê, é justo, ainda que cometa os maiores delitos.14
Eis na teoria luterana a que se reduz a obra da Redenção: Cristo, para isentaro homem de observar a lei, observou-a em lugar dele; o homem, pela fé, atribui a si esta observância, assegura destarte a graça divina e pode descansar seguro naumpinidade do seu pecado inauferível.15
Da teoria luterana sobre a queda original e a justificação decorre com inevitável corolário, a inutilidade e mesmo a nocividade das boas obras. Rigorosamente falando, até a expressão "boas obras" é um contra-senso. Essencialmente corrupto, o homem é necessariamente pecador em todos os seus atos. A justificação exterior e forense não lhe pode sanar este vício essencial. Esforçar-se nessas condições, por praticar as que chamamos boas obras não é senão multiplicar pecados.
Os reformadores não recuaram ante a enormidade dessas consequências. Antes de tudo, a inutilidade das obras na justificação do pecador. "Rejeitamos e condenamos as proposições em que se
3. "Consequitur itaque omnia hominum quantuvis laudabilia in speciem opera plane vitiosa et morte digna peccatga". MELANCHTHON, Corp. Refomat., XXI, 106. Cfr. Ibid., p. 103.
14. "Ita vides quam dives sit homo christianus sive baptizatus qui etiam volens non potest perdere salutem suam quatiscumque peccatis nisi nolit credere. ulla enim peccatga eum possunt damnare, nisi sola incredulitas:Caetera omnia si... stet fides in promissionem divinam baptizato factam in momento absbentur per eandem fidem". LUTERO, Weimar, VI, 529. "Qui credit et aeque magnum peccatum habet ut incredulus, credendi tamen condenatur et nom imputatur... Itaque, [credens] peccatum habens et peccans tamen manet pius... atque ea est vera piorum consolatio, quod etiamsi peccatga habeant et committnt, tamen sicant ea propter fidem in Christum nom imputri sibi". Weimar, XL, 2, aBT., 96.
15. "Christus spectandus est, in quo cum peccata tua haererevidebis, securus eris a peccatis, morte et inferno. Dices enim peccata mea non sunt mea qui non sunt in me, sede sunt aliena, Christi videlicet; non ergo me laedere poterunt". Weimar, XXV, 330. "Si conscientia peccati te accusat, si ponat ob oculos iram Dei... non debes ei consentire sed contra conscientiam et sensus tuos judicere Deum non esse iratum, te non esse damnatum"!. Weimar, XXV, 330.1
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afirma a necessidade das boas obras para a salvação". Pouco antes a mesma Fórmula da Concórdia, símbolo oficial do luteranismo, assim exprimira o artigo da nova fé: "Cremos, ensinamos e confessamos que as boas obras se devem totalmente excluir (penitus excludenda), não só quando se trata da justificação pela fé, senão ainda quando se discute acerca de nossa eterna salvação".16
Inúteis as boas obras; não só, senão ainda nocivas. Fale LUTERO, no seu comentário da epístola aos Gálatas: "a lei, as obras, a caridade, os votos não só não resgatam mas agravam a maldição. Quanto mais obras fizermos tanto menos poderemos conhecer e apreender a Cristo".17
A vista das consequências imorais desta doutrina, um professor de Guttemberga, JORGE MAIOR, tentou modificá-la proclamando as boas obras, necessárias, como condição sine qua non, à salvação eterna. Por toda a parte, surgiram os contraditores, NICOLAU D'AMSDORF, amigo de LUTERO e por ele consagrado "bispo" de Naumburgo, saiu à estacada com uma obra apostólica a que deu por título: Que a proposição "as boas obras são nocivas à salvação" é justa, verdadeira, cristã, pregada por S. Paulo e S. Lutero (1559).
Tal a teoria de justificação no primeiro reformadores.18
À luz desta doutrina como se transmuda o aspecto do Evangelho! Julgávamos-lo todos um código elevadíssimo de moral, um conjunto de preceitos sancionados com prêmios e castigos e destinado a sublimar o homem muito acima da simples lei natural. Que engano! O Evangelho é emancipação de toda a espécie de vínculos morais, é o fundamento de uma confiança absoluta de chegar ao céu sem esforço, é o código do prazer. Nele encontra o crente um título de isenção da virtude e um rescrito de indenidade para todos os vícios. Eis a boa nova, "a doutrina grata e consoladora para as almas".
Não se admire o leitor. Todas essas conclusões, por mais abomináveis que pareçam a quem conserva uns restos de senso moral, encontram-se não só virtualmente na doutrina protestante da justificação, mas expressa e formalmente nos escritos dos primeiros
16. Formula Concordiae, I,art. IV, n. 16 e 7; J. T. MÜHLER, pp. 533, 531.
17. Weimar, XI, I Abt., p. 447.
18. Digo nos primeiros reformadores porque alguns símbolos e teólogos protestantes de época posterior, sob a pressão das objeções católicas, limaram as arestas de tão angulosa doutrina, e procuraram, ainda com sacrifício da coerência sistemática, inculcar de algum modo a necessidade de outras virtudes, que não só a fé.
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reformadores. Alego uma ou outra citação ao acaso entre as inúmeras que se poderiam colher nas obras de LUTERO. "O Evangelho não prega o que devemos fazer; não exige nada de nós. Antes, em vez de dizer-nos: faze isto ou aquilo, manda-nos simplesmente estender as estes e receber: toma, meu caro, eis o que Deus fez por ti; por teu amor ele vestiu o próprio Filho de carne humana... aceita este dom: crê e serás salvo".19 "Não desesperes por causa dos teus pecados mas cobra ânimo e dize: posso ter feito algum bem ou algum mal, mas isto pouco importa; Cristo sofreu por mim... A isto se reduz todo o cristianismo, a sentir que não tens pecado ainda quando pecas, a sentir que teus pecados aderem a Cristo, que é salvador do pecado".20
Este antagonismo entre a lei moral e o Evangelho recorre a cada passo na pena do infeliz apóstata em busca de um anestésico poderoso para ao consciência dilacerada de remorsos. A fim de salvar o Evangelho é mister aniquilar a lei moral: são inimigos irreconciliáveis e incompatíveis. "É necessário que procuremos com todas as forças afastar a lei da nossa consciência quanto o céu da terra... Quando a lei te aterroriza, te acusa, te mostra o pecado, te ameaça com a cólera divina e com a morte, faze como se nunca houvera existido lei ou pecado, como se só existira Cristo que é todo graça e redenção. Ou se sentes no fundo da alma os terrores da lei, repete: lei, não quero ouvir-te: ... chegou a plenitude dos tempos, sou livre, já não suportarei o teu império".21 Que esforços de uma vontade obstinada para sufocar "os terrores da lei na consciênca!" Vede-o ainda a debater-se contra a idéia de Cristo legislador e de Cristo juíz... Vede a exorcizá-la como um obsessão diabólica. "Se Cristo nos aparecesse como juíz irritado ou legislador que nos chama a contas, consideremo-lo como um demônio furioso e não como a Cristo".22 Não só com as palavras mas também com as nossas ações e com o nosso procedimento exercitemo-nos com diligência [para cauterizar a consciência é mister muito exercício!] em separar Cristo de qualquer ideia de legislador a fim de que, apresentando-se-nos o demônio sob a figura de Cristo para molestar-nos em seu nome, saibamos que não é Cristo, mas que é verdadeiramente o diabo".23
19. Weimar, XXIV, 4; cfr. Weimar, XL, 1 Abt., 168.
20. Wemar, XXV, 329, 331.
21. Weimar, XL, 1 Abt., p. 557; cfr. t. XXV, 249-250.
22. Weimar, XL, 2 aBT., P. 13.
Falando da liberdade, já tivemos ensejo de observar como o dogma católico concilia admiravelmente a gratuidade da graça divina com o exercício da nossa atividade livre. O auxílio de Deus, absolutamente necessário para elevar as nossas ações à ordem sobrenatural, não dispensa de modo nenhum o esforço das nossa cooperação. Nas finezas do seu amor, dispôs Deus que o /homem fosse o artista da sua felicidade.
Destarte, nascidas do conúbio misterioso da graça divina com o livre arbítrio humano, são as nossas ações germe fecundo de vida eterna. Verdade altamente digna da misericórdia de Deus e da grandeza do homem, verdade altamente estimuladora da nossa atividade moral. E a sagrada Escritura no-la ensina frequentemente, inculcando a necessidade das boas obras. Que é o magnífico sermão da montanha senão uma promessa da glória aos que praticam o bem? Que razão da suprema sentença aduzirá Cristo juíz, senão as boas obras praticadas pelos eleitos e descuradas pelos réprobos? Ouvi ao Príncipe dos Apóstolos: "Procurai por meio das boas obras, assegurar a vossa vocação e eleição". I Petr., I, 10. Ouvi a Tiago: "a fé sem obras é morta". Jac., II, 20. Abri os Evangelhos, lede todas as epístolas apostólicas. Desta leitura resultará evidente como a luz meridiana que o cristiaanismo ´um grande código de moral imposto à humanidade para a sua salvação. Cristo é Redentor não só, mas legislador também. Não basta crer, é mister ajustar as obras à fé; não basta o símbolo, é necessário também o decálogo; se vis ad vitam ingredi serva mandata. Math., XIX, 17.
A primeira preocupação de LUTERO e de seus amigos foi alijar a carga pesada das boas obras. Era mister forjar um novo cristianismo
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carrancudo, mais ameno e prazenteiro. "A palavra Evangelho significa boa nova, doutrina grata e consoladora para as almas... ouvir que a Lei já foi observada por Cristo, que nós não a devemos observar, mas só unir-nos pela fé àquele que por nós a observou".10
É a doutrina da justificação pela fé, que, na opinião do heresiarca resume a quinta essência do cristianismo, e, na realidade, é a chave de abóbada e todo o seu sistema teológico. Ei-la em duas palavras.11
O pecado original causou a depravação total do homem. A sua inteligência, nas coisas morais e divinas, não pode senão errar, a sua vontade, por mais que se esforce, não faz senão acumular pecados. E este estado de decadência identifica-se de tal modo com a essência da natureza humana que é impossível uma regeneração interior, uma verdadeira renovação espiritual. Qual será então o efeito da morte redentora de Cristo? Uma justificação simplesmente externa, equivalente a uma não-imputação do pecado. Cristo satisfez por nós, Cristo mereceu-nos o céu com o seus sofrimentos. A generosidade e a abundância de sua Redenção dispensam-nos de qualquer cooperação individual, de qualquer atividade própria, dispensam-nos até o arrependimento e do amor. Para ser justificado basta crer na eficácia do sangue divino. A fé cobre todos os nossos pecado.12
10. Weimar, I, 105. No comentário ao c. 40 de Isaías: "Esta é nossa doutrina que sabemos eficaz para consolar as consciências. Viveremos livres, lsem lei, e nos persuadiremos que os nossos ecados nos foram perdoados", Weimar, XXV, 249.
11. Sobre a teoria da justigficação em LUTERO e a sua dissolução gradual pelas diferentes facções protestantes, cf. J. A. MOEHLER, Symbolik, oder darsllung der dogmatischen Gegensaetze der Katholiken und Protestanten nach ihren oeffentlichen Bekenntnisschriften(9). Mainz, 1884, 1. I, c. 3. pp. 99-253. Desta obra clássica escreu GOYAU: "La Symbolique est le levre le plus profond que, depuis Luther, une plume catholque Allemande ait écrit sur la Réforme" G. GOYAU, Moechler, Paris, Blod, 905, p. 38. Cfr. ainda: J. SCHWANE, Histoire des dogmes, trad. franc. de A. Degert, Paris, Beauchesne, 1904. T. VI,205-239; H. GRISAR, Luther, Freib. i, B., Herder, 1911, t. II, 737-781. Este último autor estuda a teoria de LUTERO à luz das experiências religiosas e lutas internas de consciência desta alma devorada de escrúpulos e ralada de remorsos. Não é a teologia, é a psicologia que explica a origem da justificação luterana.
12. Livro da Concórdia: "Et quidem neque contritio neque dilectio, neque ulla alia virtus, sola fides tamquam medium et instrumentum quo tratiam Dei, meritum Christi et remissionem peccatorum apprendere et accipere possumus". Solida Declaratio, III, De justitia fidei, J. T. MÜHLER, Die symbolischen Bücher Der evangelisch-lutheranishcen Kirche(9),Gütersloh, 1900, p. 616. Na Apologia da Confissão Augustana: "Sola fide in Christum, non per dilectionem, nom propter diletionem at opera consequimur remissionem peccatorum, etsi dilectio sequitur fidem. Igitur sola fide justificamur".
Corp. Reformat., XXVII, 440. Em J. T. MÜHLER, p. 100. LUTERO: "Haec est ardua et insignis dignitas veraque et ominipotens potestas, spirituale imperium in quo nella res tam bona, nulla tam mala quase non in bonum mihi cooperatur. Nulla tamen mihi opus ets cum sola fide sufficiat ad salutem". Weimar, VII, 57.
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 384
Desacompanhada de obras, de contrição e de caridade, ela é o processo mecânico e externo, o instrumento com que nos apropriamos os merecimentos de Cristo, alcançamos a graça e a remissão, ou , mais exatamente, a não-imputação das nossas culpas.
Coberto assim ao olhos de Deus com o manto dos méritos do Redentor (por uma ficção jurídica indigna da santidade divina), o homem continua na realidade e instrinsecamente pecador e fonte contínua de pecados. Todas as suas ações, ainda depois de justificado, são pecaminosas e imundas.13 Mas nenhum pecado, afora o da infidelidade, pode despojá-lo da graça. Se crê, é justo, ainda que cometa os maiores delitos.14
Eis na teoria luterana a que se reduz a obra da Redenção: Cristo, para isentaro homem de observar a lei, observou-a em lugar dele; o homem, pela fé, atribui a si esta observância, assegura destarte a graça divina e pode descansar seguro naumpinidade do seu pecado inauferível.15
Da teoria luterana sobre a queda original e a justificação decorre com inevitável corolário, a inutilidade e mesmo a nocividade das boas obras. Rigorosamente falando, até a expressão "boas obras" é um contra-senso. Essencialmente corrupto, o homem é necessariamente pecador em todos os seus atos. A justificação exterior e forense não lhe pode sanar este vício essencial. Esforçar-se nessas condições, por praticar as que chamamos boas obras não é senão multiplicar pecados.
Os reformadores não recuaram ante a enormidade dessas consequências. Antes de tudo, a inutilidade das obras na justificação do pecador. "Rejeitamos e condenamos as proposições em que se
3. "Consequitur itaque omnia hominum quantuvis laudabilia in speciem opera plane vitiosa et morte digna peccatga". MELANCHTHON, Corp. Refomat., XXI, 106. Cfr. Ibid., p. 103.
14. "Ita vides quam dives sit homo christianus sive baptizatus qui etiam volens non potest perdere salutem suam quatiscumque peccatis nisi nolit credere. ulla enim peccatga eum possunt damnare, nisi sola incredulitas:Caetera omnia si... stet fides in promissionem divinam baptizato factam in momento absbentur per eandem fidem". LUTERO, Weimar, VI, 529. "Qui credit et aeque magnum peccatum habet ut incredulus, credendi tamen condenatur et nom imputatur... Itaque, [credens] peccatum habens et peccans tamen manet pius... atque ea est vera piorum consolatio, quod etiamsi peccatga habeant et committnt, tamen sicant ea propter fidem in Christum nom imputri sibi". Weimar, XL, 2, aBT., 96.
15. "Christus spectandus est, in quo cum peccata tua haererevidebis, securus eris a peccatis, morte et inferno. Dices enim peccata mea non sunt mea qui non sunt in me, sede sunt aliena, Christi videlicet; non ergo me laedere poterunt". Weimar, XXV, 330. "Si conscientia peccati te accusat, si ponat ob oculos iram Dei... non debes ei consentire sed contra conscientiam et sensus tuos judicere Deum non esse iratum, te non esse damnatum"!. Weimar, XXV, 330.1
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 385
afirma a necessidade das boas obras para a salvação". Pouco antes a mesma Fórmula da Concórdia, símbolo oficial do luteranismo, assim exprimira o artigo da nova fé: "Cremos, ensinamos e confessamos que as boas obras se devem totalmente excluir (penitus excludenda), não só quando se trata da justificação pela fé, senão ainda quando se discute acerca de nossa eterna salvação".16
Inúteis as boas obras; não só, senão ainda nocivas. Fale LUTERO, no seu comentário da epístola aos Gálatas: "a lei, as obras, a caridade, os votos não só não resgatam mas agravam a maldição. Quanto mais obras fizermos tanto menos poderemos conhecer e apreender a Cristo".17
A vista das consequências imorais desta doutrina, um professor de Guttemberga, JORGE MAIOR, tentou modificá-la proclamando as boas obras, necessárias, como condição sine qua non, à salvação eterna. Por toda a parte, surgiram os contraditores, NICOLAU D'AMSDORF, amigo de LUTERO e por ele consagrado "bispo" de Naumburgo, saiu à estacada com uma obra apostólica a que deu por título: Que a proposição "as boas obras são nocivas à salvação" é justa, verdadeira, cristã, pregada por S. Paulo e S. Lutero (1559).
Tal a teoria de justificação no primeiro reformadores.18
À luz desta doutrina como se transmuda o aspecto do Evangelho! Julgávamos-lo todos um código elevadíssimo de moral, um conjunto de preceitos sancionados com prêmios e castigos e destinado a sublimar o homem muito acima da simples lei natural. Que engano! O Evangelho é emancipação de toda a espécie de vínculos morais, é o fundamento de uma confiança absoluta de chegar ao céu sem esforço, é o código do prazer. Nele encontra o crente um título de isenção da virtude e um rescrito de indenidade para todos os vícios. Eis a boa nova, "a doutrina grata e consoladora para as almas".
Não se admire o leitor. Todas essas conclusões, por mais abomináveis que pareçam a quem conserva uns restos de senso moral, encontram-se não só virtualmente na doutrina protestante da justificação, mas expressa e formalmente nos escritos dos primeiros
16. Formula Concordiae, I,art. IV, n. 16 e 7; J. T. MÜHLER, pp. 533, 531.
17. Weimar, XI, I Abt., p. 447.
18. Digo nos primeiros reformadores porque alguns símbolos e teólogos protestantes de época posterior, sob a pressão das objeções católicas, limaram as arestas de tão angulosa doutrina, e procuraram, ainda com sacrifício da coerência sistemática, inculcar de algum modo a necessidade de outras virtudes, que não só a fé.
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 386
reformadores. Alego uma ou outra citação ao acaso entre as inúmeras que se poderiam colher nas obras de LUTERO. "O Evangelho não prega o que devemos fazer; não exige nada de nós. Antes, em vez de dizer-nos: faze isto ou aquilo, manda-nos simplesmente estender as estes e receber: toma, meu caro, eis o que Deus fez por ti; por teu amor ele vestiu o próprio Filho de carne humana... aceita este dom: crê e serás salvo".19 "Não desesperes por causa dos teus pecados mas cobra ânimo e dize: posso ter feito algum bem ou algum mal, mas isto pouco importa; Cristo sofreu por mim... A isto se reduz todo o cristianismo, a sentir que não tens pecado ainda quando pecas, a sentir que teus pecados aderem a Cristo, que é salvador do pecado".20
Este antagonismo entre a lei moral e o Evangelho recorre a cada passo na pena do infeliz apóstata em busca de um anestésico poderoso para ao consciência dilacerada de remorsos. A fim de salvar o Evangelho é mister aniquilar a lei moral: são inimigos irreconciliáveis e incompatíveis. "É necessário que procuremos com todas as forças afastar a lei da nossa consciência quanto o céu da terra... Quando a lei te aterroriza, te acusa, te mostra o pecado, te ameaça com a cólera divina e com a morte, faze como se nunca houvera existido lei ou pecado, como se só existira Cristo que é todo graça e redenção. Ou se sentes no fundo da alma os terrores da lei, repete: lei, não quero ouvir-te: ... chegou a plenitude dos tempos, sou livre, já não suportarei o teu império".21 Que esforços de uma vontade obstinada para sufocar "os terrores da lei na consciênca!" Vede-o ainda a debater-se contra a idéia de Cristo legislador e de Cristo juíz... Vede a exorcizá-la como um obsessão diabólica. "Se Cristo nos aparecesse como juíz irritado ou legislador que nos chama a contas, consideremo-lo como um demônio furioso e não como a Cristo".22 Não só com as palavras mas também com as nossas ações e com o nosso procedimento exercitemo-nos com diligência [para cauterizar a consciência é mister muito exercício!] em separar Cristo de qualquer ideia de legislador a fim de que, apresentando-se-nos o demônio sob a figura de Cristo para molestar-nos em seu nome, saibamos que não é Cristo, mas que é verdadeiramente o diabo".23
19. Weimar, XXIV, 4; cfr. Weimar, XL, 1 Abt., 168.
20. Wemar, XXV, 329, 331.
21. Weimar, XL, 1 Abt., p. 557; cfr. t. XXV, 249-250.
22. Weimar, XL, 2 aBT., P. 13.
23. Weimar, XL, 1 Abt., p. 299. Identifiquemo-nos ainda nestas passagens do Reformador: "O cristão, principalmente nas tentações, não deve absolutamente pensar em lei e em pecado... Com propriedade pode definir-se o cristão: o homem livre de todas as leis, no foro interno e externo". Weimar XL, 1 Abt., p 235. "Erasmo e os papistas cuidam que Cristo é um novo legislador; na sua demência nada entendeu do Evangelho, representam-no fantasticamente como um código de novas leis, à semelhança dos que sonham os turcos do seu Corão." Weimar XL., Abt. p. 259. "Tal é a cegueira e a loucura dos papistas que chegaram a transformar Cristo em legislador pior que Moisés e o Evangelho em lei de amor". Weimar, XL, ' Abt., p. 141. Não destoam dos antigos os modernos protestantes, ainda que baseados em outros princípios: "Jamais Jésus ne donne de commandements que seraient les siens et qui doivent replacer les ordonnances de la Loi... C'est qu'il ne nous donne pas plus de devoirs à apprendre que de doctrines à croire... Jésus ne nous a pas apporté de liste de croyances às admettre et de dogmes à signer". ED. STAPFER, Jésus, pendant son ministre(2), Paris, 1897, p. 334-35. "Il [Jésus] ne promulgue aucune loi ne aucun dogme; il ne fond aucune instituion officielle". A. SABATIER, Esquisse d'une philosophie de la religion(9), Paris, Fischhacher (s. data) 1. II, c. 11, § 3, p. 193.
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 387
Ouvimos LUTERO, ouçamos os seus discípulos mais célebres.
MELANCHTHON: "Em qualquer das tuas ações, comendo, bebendo, ensinando ou trabalhando manualmente ainda que seja evidente que pecas em tudo isto, não te preocupes com as tuas obras; considera as promessas de Deus e crê confiadamente que no céu não tens um juíz, mas um bom pai todo amor e ternura".24 Como quem dissera: és ladrão, homicida, adúltero, caluniador? Não te incomodes, tuas ações de nada valem. Lá no céu, Deus é um bom e velho papai que fecha os olhos complacentemente e perdoa tudo.
CALVINO atira a barra mais longe. À doutrina da justificação de LUTERO acrescenta a da inamissibilidade da fé. A fé que justifica, segundo o reformador de Genebra, é um dom divino concedido ao homem uma vez para sempre e para sempre inamissível [que não se perde; não sujeito a perder-se]. Os delitos mais graves, cometidos por quem uma vez se achou em estado de graça, não o poderão nunca privar da amizade de Deus. É a predestinação infalível, carta branca para todos os excessos.
Mas, dirá o leitor, e a Escritura? Não a haviam proclamado os protestantes regra infalível de fé? Como fechar tão obstinadamente os olhos a ponto de não ver nas páginas divinas a condenação mil vezes repetida de doutrina tão imoral? Assim parece. Mas a Escritura deve ser interpretada pelo livre exame. Só assim é regra de fé e norma de costumes. A Escritura vale, pois, o que vale a sua interpretação. Deixada aos caprichos e paixões individuais, não há livro mais inofensivo e acomodatício. À "crítica" do leitor não faltarão nunca expedientes para trazer o texto ao sentido que se deseja. Em caso de rebeldia absoluta, aí estão os recursos extremos da crítica cirúrgica: a amputação. Quereis ver LUTERO em exercício de suas funções de livre comentador? Ouvi-o.
24. MELANCHTHON, de locis theologicis, cCorpus Reormat, XXI, 163-4.
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 388
Diz S. Tiago na sua epístola que "a fé sem obras é morta", que "o homem é justificado pelas obras e não só pela fé"? A epístola de S. Tiago é apócrifa, deve ser expungida do rol das escrituras canônicas como uma "verdadeira epístola de palha", eine rechte strocherne Epistel.25 Precisa nosso exegeta de uma autoridade que confirme sua doutrina? Lança mão de um texto de S. Paulo na sua Epístola aos Romanos: "arbitramur justificari hominem per fidem sine operibus legis"26 e insere fraudulentamente na sua tradução alemã a palavra só antes de fé (allein church das Glauben). Reclamam naturalmente os adversários contra semelhante processo crítico. LUTERO não recua e escreve a LINK: "Se o novo papista quiser importunar-nos por causa da palavra só responde-lhe logo: assim o quer o Dr. Martinho Lutero que diz: papista e asno são a mesmo coisa. Sic volo, sic jubeo, sit pro ratione voluntas... Só me pesa de não haver acrescentado também a palavra nenhuma, sem obra nenhuma de lei alguma, o que exprime o meu pensamento [e o da Bíblia?] com toda a nitidez e clareza. Por isto quero que a partícula fique no meu Novo Testamento e ainda que enlouquecessem todos estes asnos de papistas não vingarão eliminá-la".27
Mas não basta haver criado um novo Evangelho, um Evangelho seu. Todos os Livros santos da primeira à última palavra protestam energicamente contra o seu erro. Que fará o grande paladino da
25. Erl., LXIII, 115; Walch, XIX, 142; xiv, 105.
26.Para entender-se o verdadeiro significado deste passo cumpre observar que nele, como em tantos outros lugares de suas epístolas, combate o Apóstolo aos Judeus que se obstinavam em afirmar a necessidade da Lei antiga (Lei, Thorah, era o título com que indicavam os hebreus o Pentateuco em oposição aos Profetas, nome com que se designavam outros livros inspirados). Contra esse erro assevera S. Paulo que não são os ritos mosaicos que santificam o homem, mas a fé em Cristo, na sua Redenção, na sua justiça. De um lado, a incredulidade em Cristo e a confiança nas obras da Lei praticadas pelas simples forças naturais do homem, do outro a fé no Redentor e na sua justificação, como dom gratuito de Deus são aqui os membros da antítese, e não a fé no Salvador e as boas obras sobrenaturais inspiradas por esta fé. O Apóstolo distingue sempre as obras da Lei erga rou nomon e as boas obras erga agata, kala. A necessidade destas úlçtimas, isto é, das boas obras informadas pela graça e pelo espírito do Cristo, professa-a claramente S. Paulo em mil lugares das suas epístolas. Neste mesma, aos Romanos, II, 7, 13 escreve: "Aos que constantes no bem operar proclamam a glória, a honra, a imortalidade (dará o Senhor) a vida eterna... Porque não são justos diante de Deus os que ouvem a Lei, mas serão justificados os que a põem em prática". Aos fiéis da Galácia, V, 6: "Em Jesus Cristo nada vale o circunciso ou o incircunciso, mas a fé que opera pela caridade". Como se vê, acontece com os protestantes o que já dizia S. Pedro: "In quibus [i. é, nas epistolas de S. Paulo] sunt quaedam difficila intellectu quae indocti et instabiles depravant, sicut et ceteras Scripturas ad suam ipsoram perditionem". II Petr., III, 16.
27. Carta a Link, 12 set. 1550. Wimar XXX, 2 Abt., 635 e 643.
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 389
Escritura? Desprezará e rejeitará todos os livros inspirados. Ouçam protestantes e não protestantes: "Se os nossos adversários fazem valer a Sagrada Escritura contra Jesus Cristo, nós fazemos valer Jesus Cristo contra a Escritura. Do meu lado, tenho o Senhor, eles têm os servos, nós, a cabeça, eles, os pés e os membros que se devem sujeitar e obedecer à cabeça. Se é mister sacrificar-se a lei em Jesus Cristo, sacrifique-se a lei, não Jesus Cristo".28 "Tu fazes grande caso da Escritura que é serva de Jesus Cristo; eu, pelo contrário, dela me não importo. À serva liga a importância que quiseres, eu quero valer-me de Jesus Cristo que é o verdadeiro senhor e soberano da Escritura e que mereceu e conquistou com sua morte e ressurreição a minha justiça e a minha salvação eterna".29
Assim, depois de haver o heresiarca levantado a Escritura como pendão de revolta contra a Igreja, sacrifica ora a Escritura a Jesus Cristo. Mas sem Igreja e sem Escrituras, que sabe LUTERO de Jesus? Cristo será apenas nos seus lábios um passaporte para todos os devaneios doutrinais, para todas as licenças de sua ímpia reforma.Tão verdade é que Cristo, a Escritura e a Igreja constituem a trilogia inseparável; impossível impugnar uma destas verdade sem destruir as outras.
Destarte, atropelando a razão, conculcando a Igreja, menosprezando a falsificando a Bíblia, injuriando sacrilegamente a Jesus Cristo conseguiu o frade apóstata estabelecer a mais imoral das doutrinas que ainda viram os homens: a apoteose do pecado arvorado em instrumento eficaz de salvação. Toda essa indignidade se acha condensada nas célebres palavras: "Sê pecador, e peca a valer, mas com mais firmeza ainda, crê e alegra-te em Cristo vencedor do pecado, da morte e do mundo. Durante a vida presente devemos pecar. Basta que pela misericórdia de Deus conheçamos o Cordeiro que tira os pecados do mundo. Dele não nos há de separar o pecado, ainda que cometêssemos por dia mil homicídios e mil adultérios".30
28. Opera latina, Wittemberga I,m 387-a.
29. Walch, VIII, 2140 ss.
30. Eis no original o texto abominável: "Esto peccator et pecca fortiter; sod fortius fide et gaude in Christo, qui victort est peccati, mortins et mundo. Peccatum est quamdiu hic sumus... Sufficit quod agnovimus per divitias gloriae Deis Agnum qui tollit peccatum mundi; ab hoc non avellet nos peccatum atisi millis millies, no die, dornicamur aut occidamus". DE WEETE, II, 37 (Carta a Melanchthon, 1 agosto de 1521).
A MORAL NAS DOUTRINAS DA REFORMA - Pgs. 387
Ouvimos LUTERO, ouçamos os seus discípulos mais célebres.
MELANCHTHON: "Em qualquer das tuas ações, comendo, bebendo, ensinando ou trabalhando manualmente ainda que seja evidente que pecas em tudo isto, não te preocupes com as tuas obras; considera as promessas de Deus e crê confiadamente que no céu não tens um juíz, mas um bom pai todo amor e ternura".24 Como quem dissera: és ladrão, homicida, adúltero, caluniador? Não te incomodes, tuas ações de nada valem. Lá no céu, Deus é um bom e velho papai que fecha os olhos complacentemente e perdoa tudo.
CALVINO atira a barra mais longe. À doutrina da justificação de LUTERO acrescenta a da inamissibilidade da fé. A fé que justifica, segundo o reformador de Genebra, é um dom divino concedido ao homem uma vez para sempre e para sempre inamissível [que não se perde; não sujeito a perder-se]. Os delitos mais graves, cometidos por quem uma vez se achou em estado de graça, não o poderão nunca privar da amizade de Deus. É a predestinação infalível, carta branca para todos os excessos.
Mas, dirá o leitor, e a Escritura? Não a haviam proclamado os protestantes regra infalível de fé? Como fechar tão obstinadamente os olhos a ponto de não ver nas páginas divinas a condenação mil vezes repetida de doutrina tão imoral? Assim parece. Mas a Escritura deve ser interpretada pelo livre exame. Só assim é regra de fé e norma de costumes. A Escritura vale, pois, o que vale a sua interpretação. Deixada aos caprichos e paixões individuais, não há livro mais inofensivo e acomodatício. À "crítica" do leitor não faltarão nunca expedientes para trazer o texto ao sentido que se deseja. Em caso de rebeldia absoluta, aí estão os recursos extremos da crítica cirúrgica: a amputação. Quereis ver LUTERO em exercício de suas funções de livre comentador? Ouvi-o.
24. MELANCHTHON, de locis theologicis, cCorpus Reormat, XXI, 163-4.
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Diz S. Tiago na sua epístola que "a fé sem obras é morta", que "o homem é justificado pelas obras e não só pela fé"? A epístola de S. Tiago é apócrifa, deve ser expungida do rol das escrituras canônicas como uma "verdadeira epístola de palha", eine rechte strocherne Epistel.25 Precisa nosso exegeta de uma autoridade que confirme sua doutrina? Lança mão de um texto de S. Paulo na sua Epístola aos Romanos: "arbitramur justificari hominem per fidem sine operibus legis"26 e insere fraudulentamente na sua tradução alemã a palavra só antes de fé (allein church das Glauben). Reclamam naturalmente os adversários contra semelhante processo crítico. LUTERO não recua e escreve a LINK: "Se o novo papista quiser importunar-nos por causa da palavra só responde-lhe logo: assim o quer o Dr. Martinho Lutero que diz: papista e asno são a mesmo coisa. Sic volo, sic jubeo, sit pro ratione voluntas... Só me pesa de não haver acrescentado também a palavra nenhuma, sem obra nenhuma de lei alguma, o que exprime o meu pensamento [e o da Bíblia?] com toda a nitidez e clareza. Por isto quero que a partícula fique no meu Novo Testamento e ainda que enlouquecessem todos estes asnos de papistas não vingarão eliminá-la".27
Mas não basta haver criado um novo Evangelho, um Evangelho seu. Todos os Livros santos da primeira à última palavra protestam energicamente contra o seu erro. Que fará o grande paladino da
25. Erl., LXIII, 115; Walch, XIX, 142; xiv, 105.
26.Para entender-se o verdadeiro significado deste passo cumpre observar que nele, como em tantos outros lugares de suas epístolas, combate o Apóstolo aos Judeus que se obstinavam em afirmar a necessidade da Lei antiga (Lei, Thorah, era o título com que indicavam os hebreus o Pentateuco em oposição aos Profetas, nome com que se designavam outros livros inspirados). Contra esse erro assevera S. Paulo que não são os ritos mosaicos que santificam o homem, mas a fé em Cristo, na sua Redenção, na sua justiça. De um lado, a incredulidade em Cristo e a confiança nas obras da Lei praticadas pelas simples forças naturais do homem, do outro a fé no Redentor e na sua justificação, como dom gratuito de Deus são aqui os membros da antítese, e não a fé no Salvador e as boas obras sobrenaturais inspiradas por esta fé. O Apóstolo distingue sempre as obras da Lei erga rou nomon e as boas obras erga agata, kala. A necessidade destas úlçtimas, isto é, das boas obras informadas pela graça e pelo espírito do Cristo, professa-a claramente S. Paulo em mil lugares das suas epístolas. Neste mesma, aos Romanos, II, 7, 13 escreve: "Aos que constantes no bem operar proclamam a glória, a honra, a imortalidade (dará o Senhor) a vida eterna... Porque não são justos diante de Deus os que ouvem a Lei, mas serão justificados os que a põem em prática". Aos fiéis da Galácia, V, 6: "Em Jesus Cristo nada vale o circunciso ou o incircunciso, mas a fé que opera pela caridade". Como se vê, acontece com os protestantes o que já dizia S. Pedro: "In quibus [i. é, nas epistolas de S. Paulo] sunt quaedam difficila intellectu quae indocti et instabiles depravant, sicut et ceteras Scripturas ad suam ipsoram perditionem". II Petr., III, 16.
27. Carta a Link, 12 set. 1550. Wimar XXX, 2 Abt., 635 e 643.
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Escritura? Desprezará e rejeitará todos os livros inspirados. Ouçam protestantes e não protestantes: "Se os nossos adversários fazem valer a Sagrada Escritura contra Jesus Cristo, nós fazemos valer Jesus Cristo contra a Escritura. Do meu lado, tenho o Senhor, eles têm os servos, nós, a cabeça, eles, os pés e os membros que se devem sujeitar e obedecer à cabeça. Se é mister sacrificar-se a lei em Jesus Cristo, sacrifique-se a lei, não Jesus Cristo".28 "Tu fazes grande caso da Escritura que é serva de Jesus Cristo; eu, pelo contrário, dela me não importo. À serva liga a importância que quiseres, eu quero valer-me de Jesus Cristo que é o verdadeiro senhor e soberano da Escritura e que mereceu e conquistou com sua morte e ressurreição a minha justiça e a minha salvação eterna".29
Assim, depois de haver o heresiarca levantado a Escritura como pendão de revolta contra a Igreja, sacrifica ora a Escritura a Jesus Cristo. Mas sem Igreja e sem Escrituras, que sabe LUTERO de Jesus? Cristo será apenas nos seus lábios um passaporte para todos os devaneios doutrinais, para todas as licenças de sua ímpia reforma.Tão verdade é que Cristo, a Escritura e a Igreja constituem a trilogia inseparável; impossível impugnar uma destas verdade sem destruir as outras.
Destarte, atropelando a razão, conculcando a Igreja, menosprezando a falsificando a Bíblia, injuriando sacrilegamente a Jesus Cristo conseguiu o frade apóstata estabelecer a mais imoral das doutrinas que ainda viram os homens: a apoteose do pecado arvorado em instrumento eficaz de salvação. Toda essa indignidade se acha condensada nas célebres palavras: "Sê pecador, e peca a valer, mas com mais firmeza ainda, crê e alegra-te em Cristo vencedor do pecado, da morte e do mundo. Durante a vida presente devemos pecar. Basta que pela misericórdia de Deus conheçamos o Cordeiro que tira os pecados do mundo. Dele não nos há de separar o pecado, ainda que cometêssemos por dia mil homicídios e mil adultérios".30
28. Opera latina, Wittemberga I,m 387-a.
29. Walch, VIII, 2140 ss.
30. Eis no original o texto abominável: "Esto peccator et pecca fortiter; sod fortius fide et gaude in Christo, qui victort est peccati, mortins et mundo. Peccatum est quamdiu hic sumus... Sufficit quod agnovimus per divitias gloriae Deis Agnum qui tollit peccatum mundi; ab hoc non avellet nos peccatum atisi millis millies, no die, dornicamur aut occidamus". DE WEETE, II, 37 (Carta a Melanchthon, 1 agosto de 1521).
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