terça-feira, 22 de junho de 2010

IRC/LCP II-III-1

Causas que retardaram a dissolução religiosa do protestantismo.
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Efeitos imediatos do livre exame. - "Catolização" prática do protestantismo. - Escravização ao poder civil.

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Livro II 

São Pedro, Papa Imortal



CAPÍTULO III - CONSEQUÊNCIAS DO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DO PROTESTANTISMO



§ 1. - Causas que retardaram a dissolução religiosa do protestantismo.

SUMÁRIO - Efeitos imediatos do livre exame. - "Catolização" prática do protestantimo. - Escravização ao poder civil.




O livre exame é um vírus dissolvente a cuja energia corrosiva nenhuma religião pode resistir. Um dilema impõe-se inelutavelmente à inteligência: ou uma autoridade externa, estabelecida por Deus como árbitro infalível nas coisas de fé ou o indivíduo arvorado em juíz supremo do seu credo religioso; ou a Igreja católica conservando a unidade do dogma e da moral, ou o individualismo subjetivista perdendo-se nos devaneios vaporosos de uma sentimentalismo polimorfo.




Nos primeiros dias da Reforma, LUTERO não calculou todas consequências do princípio subsversivo. Sem temperamentos nem reservas, atirou-o em toda a sua crueza às massas que ele concitava à revolta. No tratado contra Henricum regem Angliae, publicado em Wittemberga em 1522, afirma sem rebuços: "a todos os cristãos e a cada um em particular pertence conhecer e julgar a doutrina. Anátema a quem lhes tocar um fio deste direito".1 Era a teoria do sacerdócio universal. Todos os fiéis são reis e sacerdotes, senhores absolutos na interpretação das Escrituras, livres de
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1. Weimar, X. 2 Abt., p. 217.

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expor e ensinar a fé. Fora o pretexto de que se valera o frade obscuro para levantar o estandarte da rebelião contra a Igreja universal.



Amestrado, porém, pela experiência, bem cedo viu o reformador aonde levavam as consequências de tão desastradas premissas. A sua obra apenas encetada desabava em ruínas, fragmentando-se em poeira impalpável. Era literalmente o quot capita tot sententiae. Já em 1525, escrevendo aos "cristãos de Antuérpia" deplorava a anarquia dogmática nestes termos: "Este não quer o batismo, aquele nega os sacramentos; quem admite outro mundo entre este e o juízo final, quem ensina que Cristo não é Deus; uns dizem isto, outros aquilo, em breve serão tantas as seitas e tantas as religiões quantas são as cabeças. Há mais estultice que acreditar alguém ser inspiração do Espírito Santo quanto lhe cruza pelo pensamento ou lhe acode em sonho?".2




Para salvar então a Reforma ameaçada de dissolução logo ao nascer, o astuto frade arripiou carreira. Conservando especulativamente o princípio do livre exame, renunciou-o na prática para adotar o princípio católico da autoridade.

O protestantismo na frase de BOUGHAUD catolicizou-se. Os seus chefes entraram a deplorar a ausência da disciplina e do governo da Igreja que haviam coberto de baldões e insultos soezes. "Se o mundo durar mais tempo, escrevia LUTERO a ZWINGLIO, será mister receber de novo os decretos dos concílios a fim de conservar a unidade de fé contra as diversas interpretações das Escritura que por aí correm".5 MELANCHTHON reclamava o prestígio da antiga jerarquia; "desejáramos que fosse grande a autoridade dos bispos".4 "Sem a supremacia do Papa, dirá mais tarde GRÓCIO, é impossível conservar a unidade".5 Mas voltar a Roma e submeter-se ao pastor constituído por Cristo não era para a soberba dos revoltados. Ensaiaram-se então vários sucedâneos do papa. LUTERO compôs um catecismo obrigatório, fulminando anátemas e enviando a todos os diabos quem dele se atrevesse a discordar. Era um papa de papel, na expressão irônica de BUCCERO. Já os reformados não deviam buscar "na Bíblia e só na Bíblia" a doutrina da salvação. Wittemberga
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2. Weimar, XVIII, 547; DE WETTE, III. 61.

3. Cit. por BOUGAUD, Le Chistianisme et les temps présents, t. IV(7), P. 289. Sobre o desejo de reconstruir a jerarquia eclesiástica e as ordenações episcopais do "papa" Lutero, cfr. GRISAR, Luther, III, 159-167.

4. Corp. Reformt, II, 869.

5. H. GROTUIS, Via ad pacem ecclesiasticam, Opera theologica Basileae, 1732, p. 617.




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lhes impunha a nova fé com plena autoridade infalível. Mas se a arraia-miúda e ignorante se conformava com a nova situação, as cabeças pensantes arrostaram os anátemas e continuaram a construir e destruir dogmas a seu talante. CALVINO publicou as Instituições e já sabemos com que severidade de penas impôs aos genebrinos o seu credo absurdo.

Entretanto a discórdia continuava a lavrar cada vez mais profunda e mais extensa. Os próprios chefes no ardor das discussões já não se entendiam. Recorrem, então, às assembleias gerais, arremedilhos dos concílios católicos. Em Augsburgo reuniram-se os maiorais da seita e formularam a célebre confissão augustiana (1530), redigida por MELANCHTON. De seu lado, ZWINGLIO formulara também a sua confissão, BUCERO propunha uma terceira: a confissão tetrapolitana ou de Strasburgo. Apenas os protestantes se viram na contingência de formular um símbolo, as contradições pulularam por toda a parte. Em todo o caso, as fórmulas simbólicas eram ainda assim um arrimo para estear o edifício vacilante da nova fé. Os concílios, sob o nome de sínodos provinciais ou nacionais, entraram também nos usos da seita e ainda uma vez substituíram o princípio de autoridade ao do livre exame. "Prometemos diante de Deus submetermo-nos a quanto for estabelecido e resolvido na vossa assembleia, a pô-lo em execução com todo o nosso zelo, persuadidos que Deus presidirá à vossa reunião e vos guiará pelo seu Santo Espírito em toda a verdade e justiça pela regra de sua palavra". É a fórmula de juramento do sínodo protestante de Vitré (1617). Os católicos não falariam diversamente do concílio Vaticano. Onde o livre exame? Onde a decantada liberdade de formular individualmente a própria fé pela interpretação imediata das Escrituras? Onde "a Bíblia e só a Bíblia e nada mais que a Bíblia", do nosso ingênuo gramático?

Destarte, pouco a pouco, mediante catecismos e confissões, o princípio católico foi substituído na vida prática ao princípio protestante. A necessidade de viver exigia este sacrifício. Hoje, na Alemanha, na Inglaterra, na Suécia, em toda a parte onde o protestantismo se conserva organizado e pode chamar-se ainda religião, o ensino da fé é feito tal qualmente nos países católicos.

Quem imagina um pai de família dando uma Bíblia ao filho e dizendo-lhe: "menino, aí tens o código de tua religião, lê-o e, com o testemunho interno do Espírito Santo, formula o teu cristianismo". Não; ninguém leva a lógica dos princípios a tal extremidade. O bom senso prevalece. A criança vai à paróquia, estuda a




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sua doutrina cristã, ouve o pastor, crê e admite o que lhe dizem dever crer e admitir para salvar-se. A maior parte do povo não lê a Bíblia e muito menos a interpreta; assiste no templo à sua leitura e abraça a explicação que lhe entende dar o seu ministro. O livre exame é para as classes intelectuais.6 Aí é que ele produz as suas ruinosas consequências. Para as massas, a autoridade impõe-se despoticamente. De quando em quando, dos próprios arraiais do protestantismo levanta-se um brado de indignação e de revolta das consciências oprimidas. "Não se pode imaginar, escreve HARLESS, escravidão mais vergonhosa para as igrejas que obrigar os fiéis a curvarem o colo sob um jugo que lhes fabricam os teólogos, hoje de um modo, amanhã de outro".7

A catolicização prática do protestantismo foi a primeiro remora que lhe retardou a dissolução imediata. Para viver, a Reforma abjurou o princípio que lhe dera nascimento: comprou a existência a preço de contradição. O poder civil foi a segunda força de que lançaram mão os reformadores para unir as partes do edifício que estalava por todas as junturas. Um papa de papel era, de manifesto, insuficiente. Era mister um papa de carne e osso e, mais, espada à cinta.

Já tivemos ensejo de ver a primeira função da força na implantação do protestantismo. Para separar-se de Roma, recorreu a Reforma à violência do ferro. Um vez separada, apelou ainda para a sua intervenção a fim de conservar ao menos um simulacro de unidade que lhe prolongasse a agonia.

Como é humilhante ver todos estes orgulhosos revoltados, que blasonavam de emancipadores da liberdade espiritual, curvarem, rendidos os joelhos ante os reis da terra e dizerem-lhes submissos: "César, que és imperador, sê também pontífice: empunha numa das mãos o cetro, na outra um báculo; sê nosso chefe espiritual; manda e te obedeceremos, fala e te creremos. Ao arbítrio de tua vontade
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6. Nem esta afirmação é verdadeira na sua universalidade. O Sr. C. PEREIRA, por exemplo, pertence sem dúvida ao número dos protestantes cultos. Cuidais que ele pratica o livre exame? Engano. Em todo o seu livro não há uma interpretação original do livro sagrado. Em coisas de fé ele não lê "a Bíblia e só a Bíblia e nada mais que a Bíblia", lê também SCHAFF, GREENWOOD, LITTLEDALE, etc., etc. Com os óculos que lhe emprestam estes escritores lê e explica a Escritura aos seus clientes brasileiros. Sem o mínimo receio de errar, afirmamos, por exemplo, que a exegese do tu es Petrus bebeu-a o nosso autor em outras fontes que não diretamente na leitura da Bíblia. Fora fazer injúria ao bom senso natural do gramático atribuir-lhe a paternidade de semelhante monstruosidade hermenêutica.

7. HARLES, Feuille périodique, t. I, p. 33.




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entregamos as nossas consciências; dos teus lábios queremos receber o símbolo de nossa religião".

Por um prato de lentilhas vendeu a Reforma o morgado espiritual que 15 séculos de catolicismo haviam transmitido, como herança intangível, à humanidade libertada por Cristo dos grilhões de César. O fruto generoso do sangue de milhões de mártires, as conquistas seculares das lutas épicas do papado contra as invasões sacrílegas do cetro imperial, a magna carta da liberdade das consciências promulgada no Evangelho: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus - tudo foi sacrificado pelo protestantismo para adiar o termo de uma uma vida efêmera, inelutavelmente fadada à dissolução da morte.

LUTERO, em texto que já deixamos citado, foi o primeiro a proclamar a fusão dos dois poderes. MELANCHTHON na Alemanha, ZWINGLIO na Suíça  CRÓCIO na Holanda, JURIEU na França, enveredaram pela estrada que lhe abrira o mestre.

"É certo, escreve este último, que os príncipes são os chefes da igreja cristã, senhores assim das religião como do estado".8

Os fatos obedeceram à teoria. Já o deixamos evidenciado. Na Inglaterra, uma lei proclamou logo a supremacia espiritual da coroa. O anglicanismo recebeu os seus 39 artigos da infalibilidade de ISABEL. Já não era um papa, era uma papisa.9 Um funcionário público visita as igrejas como "Vigário do rei". JAIME I, ao tomar as rédeas do governo declara sem embages: "faço o que me apraz: leis e evangelho". A segunda confissão de fé da Escócia leva por título: "Confissão geral da verdadeira fé cristã segundo a palavra de Deus e as atas do nosso parlamento. A religião tornou-se logo um ramo da administração pública como a marinha e as finanças. GUSTAVO na Suécia publicava mandamentos prescrevendo orações e jejuns e os rematava assim: "saibam todos que se alguém violar
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8. "Antes de tudo, diz ainda JURIEU, esta piedosa empresa [da união das igrejas] não se pode levar a termo sem o auxílio dos príncipes de um e de outro partido, porque toda a Reforma foi feita com a autoridade deles". Pouco adiante, a fim de resolver as eternas controvérsias dogmáticas entre as seitas, alvitra que "os teólogos falem como advogados, os políticos ouçam e julguem sob a autoridade dos príncipes". Aí está: a Reforma foi feita pela autoridade dos príncipes; os príncipes são os árbitros soberanos em matéria essencial de fé. Citações de BOSSUET, Hist. des variations, aditamento ao liv. XIV. MILANCHTHON ensinava que era lícito recorrer a castigos corporias contra os católicos e que os poderes civis tinham o dever de anunciar e defender a lei divina. Corp. Reformt., IX, 77; VII, 666; XI, 328.

9. Ainda quase em nossos dias não vimos os bispos anglicanos ajoelhados diante da rainha Vitória a prestar-lhe o juramento que a reconhece soberana espiritual da Igreja de Henrique VIII?




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a presente ordenação não escapará à nossa cólera e ao castigo que merecer".10

Em Basileia  os leigos tomaram as chaves do reino dos céus, e, como escreve MYCON a CALVINO, o magistrado fez-se papa. Em Montbéliard, o primeiro efeito da Reforma foi uma reunião geral dos cidadãos para saber o que ordenava o príncipe acerca da ceia.

Esta escravização ao poder civil perpetuou-se nos países protestantes. Em princípios do século passado FREDERICO GUILHERME III, de Prússia, com o fim de unificar as diferentes confissões protestantes, compilou pessoalmente uma espécie de liturgia (agenda) e por lei de 1829 a impôs a todas as igrejas. Alguns predicantes e comunidades tiveram a veleidade de opor-se. Os predicantes foram destituídos ou encarcerados; às comunidades relutantes a aceitação foi intimada militarmente.11

Graças a este compromisso aviltante, o protestantismo abordoado ao estado pôde arrastar por séculos os passos trôpegos de um inválido condenado à sepultura.

A catolicização incoerente de sua organização religiosa, a interferência profana da autoridade leiga: eis as suas causas extrínsecas que adiaram a dissolução fatal a que o livre exame condenara irremissivelmente a Reforma no século XVI. Adiaram, não a conjuraram para sempre. O veneno lavra-lhe surdamente no
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10. AUGUSTIN THEINER, La suéde et le Saint-Siège, t. I, p. 379.

11. O "caso Yatho", é um prova recente da eficácia da intervenção civil para impedir a completa dissolução interna do protestantismo. Yatho, ministro em Colônia, foi citado em 1911 ao supremo Tribunal eclesiástico (Oberchenrat) de Berlim para defender-se do delito de heresia. O predicante não só não admitia a divindade de Cristo e a inspiração do Novo Testamento, mas negava até a existência de um Deus pessoal. O tribunal declarou-o incapaz de exercer as funções. Nos círculos leigos e até nas rodas do clero "liberal" a condenação levantou imenso escarcéu. Choviam os protestos contra a demissão do honesto pastor; multiplicavam-se as mensagens de simpatia à vítima da intolerância do tribunal berlinês. O incidente ia tomando proporções gigantescas e ameaçava a paz interior da igreja evangélica. Que fazer? Igreja ligia ao Estado, ao Estado recorreu e a força pôs termos à contenda. Comentando o fato, diz CHATTERTON-HILL: "A Igreja Luterana protestante, para proteger-se, achou necessário no ano da graça de 1910 erigir um tribunal do Santo Ofício, no qual um Papa criado pelo estado, revestido de infalibilidade por decreto do Estado, julga - sem possibilidade de apelação - um ministro protestante por delito de heresia. Seria eficaz esta intervenção tardia para salvar a ortodoxia? Isto é outra questão" The sociological value of Christianity, London, 1912, p. 226. A história pormenorizada do incidente Yatho pode ler-se em J. B. KISSLING, Der deutsche Protestantismus, 1817, 1917. Münster i. W., 1917, 6. II, pp. 378-83. Que de fato não tenha sido eficaz mostra-nos a declaração de EMIL SHCULZE, em 1914. Alarmado ante a dissolução crescente da igreja evangélica, o desnorteado pastor não vê outra salvação senão a interferência mais ativa do Estado. "A Igreja Romana, única que ainda está firme, não nos é possível voltar. (Por que, amável pastor?). A quem dirigirmo-nos? Só o Estado nos pode salvar". Die Christliche Welt, 1914, n. 391. Uma Igreja que solta este grito de salvação desesperada é uma Igreja irremediavelmente condenada à esterilidade e à morte.




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organismo e dia verá que todos os paliativos humanos serão impotentes para impedir-lhe a total desagregação.

Estudemos em rápido escorço a marcha desta decomposição crescente.




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