sábado, 10 de abril de 2010

TRANSMISSÃO E PERPETUIDADE DA DOUTRINA - I-I-1

Do gênero humano disperso, dividido, sempre instável nas suas incertezas, sempre amigo de novidades curiosas de liberdades sem freio, formar um povo de Deus, uma nação de eleitos, vinculados pelos laços da mesma fé e de uma só moral – eis o complemento espontâneo da missão redentora de Cristo. Árdua e sobre-humana empresa! Mais árdua ainda e mais sobre-humana se considerarmos que esta regeneração espiritual, esta transmissão de um corpo de doutrinas e de leis deverá perpetuar-se através das gerações.

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Siglas e Abreviações





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Livro I - A Igreja Católica
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Capítulo I - S. PEDRO, PRIMEIRO PAPA
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Introdução - A Igreja no plano divino


A obra da redenção consumou-se com o sacrifício do Gólgota. O sangue divino derramado na cruz reatou as relações de amizade entre o homem prevaricador e o Pai das misericórdias. Uma nova vida moral inaugurou-se para a humanidade regenerada. Foi necessária a imolação de um Deus para levar a efeito a grande reconciliação que havia sido a esperança dos séculos passados e devia ser a alegria das gerações porvindouras.


Mas era ainda mister a intervenção de um Deus para converter e santificar a humanidade, para levar os frutos do sacrifício divino a todos os filhos da Redenção, na perpetuidade do tempo e na universalidade do espaço. Ao mundo, que já havia sido resgatado e ainda o ignorava, ao palácio dos Césares, aos filósofos de Atenas e de Roma, às multidões imersas na ignorância e na corrupção, cumpria pregar a Boa Nova, iluminadora das inteligências e purificadora dos corações. Do gênero humano disperso, dividido, sempre instável nas suas incertezas, sempre amigo de novidades curiosas de liberdades sem freio, formar um povo de Deus, uma nação de eleitos, vinculados pelos laços da mesma fé e de uma só moral – eis o complemento espontâneo da missão redentora de Cristo. Árdua e sobre-humana empresa! Mais árdua ainda e mais sobre-humana se considerarmos que esta regeneração espiritual, esta transmissão de um corpo de doutrinas e de leis deverá perpetuar-se através das gerações.





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A todos os povos escadeados no curso dos séculos e disseminados pela extensão do globo, tão diferentes por índole, costumes, educação, cultura e instituições, há de chegar a doutrina salvadora do Evangelho. Intacta, imutável, incorrupta, ela deverá sobreviver a todas as migrações dos povos, a todas as revoluções, a todas as guerras, a todas as constituições políticas, - única firme na torrente das coisas humanas que tudo arrasta nos vórtices de sua incessante mutabilidade.


A misericórdia de Deus realizou a obra da Redenção; o poder e a sabedoria de Deus perpetuaram-lhe os frutos divinos. Depois da cruz, a Igreja. Depositária fiel da doutrina de Cristo, prolongamento natural de sua missão na terra, a Igreja será o órgão destinado a assegurar a salvação do homem e a imortalizar entre nós a presença do Redentor. Cristo instituiu-a e deu-lhe a forma de sociedade visível, orgânica, hierárquica.


Nada mais em harmonia com as exigências do plano divino do que a instituição da sociedade espiritual das almas. Tudo é ordem, tudo é unidade, tudo é hierarquia nas obras do soberano artista. Os espíritos limitados dispersam. As grandes inteligências ordenam, concentram, unificam.


Contemplai o espetáculo da ordem física. Em cada indivíduo um princípio de unidade centraliza e dirige-lhe todas as energias ao mesmo fim. Sob o seu impulso misterioso os seres resistem à ação desagregadora das forças adversas, conservam tenazmente a própria feição específica e, se o sopro da vida os anima, perpetuam-se na imortalidade das gerações. Na ordem universal, as espécies subordinam-se hierarquicamente e os reinos se entre-ajudam num intercâmbio admirável de serviços. A matéria bruta subministra à vida os elementos do seu organismo e as energias de sua atividade. A planta serve ao animal, o mineral à planta, a planta e o animal, ao homem. Destarte, na ordem física, toda a natureza concorre para preparar ao mais nobre dos seres visíveis o banquete necessário à conservação e ao desenvolvimento da sua vida orgânica.


Elevai-vos agora à ordem intelectual. Também aqui, subordinação e hierarquia dos espíritos: gênios, talentos, inteligências medíocres; almas grandes que devassam com o olhar penetrante de águia novos horizontes intelectuais; almas de possante envergadura que assimilam, aprofundam, vulgarizam as descobertas geniais; almas rasteiras e comuns que vivem do alimento que lhes subministram os aristocratas do pensamento. No seio da humanidade 




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acendeu a Providência um foco de luz intensa, criou um senado de grandes homens que, de geração em geração, transmitem o patrimônio da ciência, da arte, da razão, dos grandes princípios dos axiomas imortais que são a vida e a norma das inteligências. Quem rejeita este magistério da tradição, esta herança preciosa do passado esteriliza-se condenando-se irremissivelmente à impotência do isolamento.



Vede agora com que suavidade enérgica dispôs a divina Sabedoria que se conservassem e transmitissem todos estes bens, físicos e intelectuais, na ordem do universo. Enquanto aos seres inferiores, com o império inelutável das leis físicas, impôs o agrupamento em sistemas harmoniosos, aos homens, em cujo peito arde a chama da liberdade, ordenou se unissem em sociedades hierarquicamente organizadas. Não é a necessidade fatal de uma lei fisicamente inviolável, é o peso de toda a nossa natureza que espontaneamente nos inclina ao convívio dos nossos semelhantes. No ser racional a sua fraqueza, o seu gênio, as suas tendências, as exigências poderosas do desenvolvimento físico, intelectual e moral, tudo reclama a sociedade em cujo seio depõe a Providência os germes da sua perfeição. Revolvei a história: por toda a parte encontrareis o homem social; o homem isolado, nenhures. Nasce; e a família para logo o envolve numa atmosfera de carinhos e simpatias, de cuidados e desvelos, de luz e amor. Desenvolve-se, adolesce; e a pátria o acolhe na vastidão do seu seio, oferece-lhe campo variado ao exercício de suas faculdades, autoridade à tutela dos seus direitos, perspectiva esperançosa à realização de suas aspirações. Ainda uma vez encontramos na ordem, na subordinação e na hierarquia as condições normais de vida e progresso.


Demos o derradeiro passo. Além das aptidões físicas de uma organismo animal, além das virtualidades intelectuais e morais de uma alma inteligente e livre, eu reconheço no homem a capacidade de uma vida divina, uma sede de luz infinita, de felicidade infinita. Esta sede do infinito, só Deus pode saciá-la. E Deus se fez homem para comunicar ao homem a sua vida e Deus disse ao gênero humano: Eu sou a Verdade, Eu sou a vida. Mas onde contemplar com segurança a luz desta verdade, onde haurir, em sua pureza, a plenitude desta vida? Não haverá também uma sociedade superior, hierárquica, visível, fundada por Deus para ser a depositária dos seus dons, o foco inextinguível da luz e do amor sobrenatural? Sim; a harmonia no plano divino a pede, a natureza social 




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do homem a lembra, instituiu-a a vontade positiva de Cristo. O grande foco de luz divina, a autoridade encarregada de a conservar, a fonte desta maternidade santa que gera os eleitos é a Igreja.

Por outra razão ainda convinha que as almas remidas não se dispersassem isoladas no espaço, mas se reunissem num grande organismo social tão visível, tão brilhante, tão evidente que todo o homem de boa vontade o pudesse facilmente descobrir e identificar. Deus não violenta a nossa liberdade; livres somos e livremente havemos de aceitar os seus dons. A medida da nossa fé – resposta da inteligência à revelação divina – e do nosso amor – resposta do coração à efusão de sua vida – será a medida de nossa glorificação na eternidade. Mas na Igreja do céu não serão recebidos senão os que houverem pertencido à Igreja da terra. Está escrito: quem não crer e não for batizado não se salvará. Pedia, pois, a justiça de Deus que a sociedade depositária autêntica da doutrina divina brilhasse entre os homens com os resplendores de uma luz inconfundível. E Deus não faltou à sua justiça. Por isso, iluminou o berço da Igreja com a auréola dos 
milagres e lhe cingiu a fronte com o diadema visível de Rainha da Verdade. Só na coroa da Igreja refulgem, quais gemas preciosas, a unidade, a perpetuidade e a universalidade. São as prendas do Divino esposo que a distinguirão eternamente das adulterações humanas, das sociedades heréticas ou cismáticas. Aqueles caracteres inimitáveis serão para todas as gerações o critério infalível que assinalará a verdadeira Cidade de Deus na terra.


Concluamos: uma sociedade externa, hierárquica, fundada por Cristo para comunicar às almas os tesouros da redenção é o mais belo remate às obras da Sabedoria e do Amor de Deus.


O protestantismo destruiu esta maravilhosa harmonia. Filho de um orgulho rebelde obedeceu à psicologia de quase todos os revoltados: negou a autoridade que o condenava. Sem autoridade não há sociedade. A primeira negação acarretou logicamente outra, mais profunda e radical. Para os temerários inovadores já não haverá hierarquia nem Igreja visível. As almas resgatadas dispersam-se, como bólides no firmamento, sem um centro de unidade. A doutrina do Evangelho é desamparada a todas as flutuações do livre exame e dos caprichos individuais. À organização social do cristianismo sucede o mais extremado individualismo religiosos. Ficou assim, arruinada pelos alicerces a obra admirável de Cristo. Onde reinava a ordem, implantou-se a confusão; onde a autoridade unia,





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entrou a revolta a separar; onde irradiava a verdade defendida por um magistério infalível, começou a campear o erro fragmentado em mil formas contraditórias. Quebrado o escrínio em que Deus o encerrara, o tesouro divino foi dilapidado pelos perdulários da razão e da fé.


Bastaria esta consideração sintética da dissonância que introduz o protestantismo na harmonia das criações divinas para imprimir na obra dos reformadores o sigilo da falsificação humana. Mas a verdade não perde em ser examinada e discutida em todos os seus aspectos. As minúcias da análise só lhe poderão acrescentar brilho à luz nativa e firmeza à solidez dos fundamentos.


O caráter social da Igreja, a sua constituição hierárquica resumem-se na instituição divina do Papado. A existência, portanto de uma autoridade suprema e infalível preposta por Cristo à sua sociedade religiosa e à tutela do patrimônio da revelação – eis o âmago da controvérsia entre católicos e protestantes. Contra a rocha de Pedro, sempre vivo nos seus sucessores, os pontífices romanos, concentram os nossos adversários todo o fogo de suas baterias. Mostrar a solidez de resistência desse divino baluarte é nossa tarefa indeclinável.


Segundo o Sr. Carlos Pereira, quatro são “os elos da corrente que deve prender a metafórica barca de S. Pedro ao cais de uma instituição divina: 1.º Pedro é a pedra fundamental de que trata o texto de S. Mateus XVI, 13-19..., 2.º Pedro foi o superior hierárquico dos apóstolos; 3.º Pedro estabeleceu em Roma a sede de seu episcopado...> 4.º Pedro instituiu os bispos de Roma seus herdeiros”, p. 215.


A luz da crítica severa e imparcial, examinemos, um por um, os quatro artigos do requisitório protestante.


Parágrafo 1. Promessa e investidura do primado.



SUMÁRIO – Preeminência de Pedro no Colégio Apostólico. – A grande promessa: tu es Petrus; as chaves do reino dos céus; o poder de ligar e desligar – Investidura solene do primado: Pasce oves meas. – A voz dos séculos.


Preeminência de Pedro no Colégio apostólico. – A promessa e colação do primado a Pedro não é um fato insulado no Evangelho. Toda a narração histórica do ministério de Cristo conspira em assinar no Colégio dos Doze um lugar de preeminência ao futuro chefe



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da Igreja. Dir-se-ia que os evangelistas, tão sóbrios em informações sobre os outros apóstolos, não perdem ensejo de falar de Pedro, de referir-lhe as palavras, de registrar os sinais de predileção com que o distinguia o Salvador.


Pela primeira vez apresenta a Cristo o humilde pescador da Galiléia: “Tu és Simão, diz-lhe Jesus, tu te chamarás Cefas, isto é, Pedra.2 Era a imposição de um nome novo, muito nos estilos de Deus,3 rica de significados e de promessas.


Durante a sua pregação apostólica é a barca de Pedro a preferida por Cristo para doutrinar as turbas.4 Se se demora em Cafarnaum, na casa de Pedro é que se hospeda.5 É Pedro quem, quase sempre, fala em nome dos apóstolos. É a Pedro, como o principal do grupo, que se dirigem os coletores do didracma para saber se o Mestre solvia o tributo do Templo e Jesus paga a taxa legal por si e por Pedro.6


Ao escrever suas memórias, em tempos posteriores, são os próprios evangelistas que lembram em salientar este lugar preponderante de Simão no Colégio apostólico. Quatro catálogos dos apóstolos depara-nos o Novo Testamento.7
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1 - O maior filósofo russo do século passado, convertido ao catolicismo: “Ceux de nos lecteurs orthodoxes qui, pour reconnaître de role exceptionnel de Pierre dans l'histoire Du N.T., NE trouveraient pás sufisante l’autorité dês S. PPères tels que Jean Crysostôme, ni même celle dês théologiens russes tels que Mgr. Philarète, seront peut-être accessibles à une preuve pour ainse dire statistique. Em considérant que parmi lês disciples immédits de Jésus aucun n’a autant de droits à une place marquée que Saint Jean, l’apôtre bien-aimé, j’aicompté combien de fois lês Evnailes e lês Actes fonte mention de Jean ET combien de fois de Pierre. Il se trouve que Le rapport est de 1 à 4, à peu près. S. Pierre est nomme 171 fois... (1134 dans lês Évaniles ET 57 dans lês Actes) ET S.Jean – 46 fois seulment (38 fois dans lês Évaniles, ys compris lês cãs ou Il parrle de lui même d’une manière indirecte ET 8 fois dans lês Actes)”. La Russie ET l’Église universelle, Paris 1889, p. 154, nota 2.

2. Joan., 1,42.

3. Três vezes em toda a Escritura mudou Deus o nome dos homens e em todas três se tratava de elevar um particular à dignidade de chefe dos eleitos. Mudou-o a Abraão, “quia patrem multarum gentium constitui te! Gen., XVII, 5: moudou-o a Jacó: “appellavit eum Israel dixitque ei... Gentes ET populi nationum ex te erunt” Gen., XXXV, 10. Mudou-o finalmente a Pedro: “tu es Petrus et super hanc petram aedificabo Ecllesiam meam! Matth., XVI, 18.

4. Luc., V, 1-4.

5. Matth., VIII, 14; Marc., I, 29; Luc., IV, 38.

6. Matth., XVII, 24,27.

7. Matth., X, 2-4; Marc., III, 16-19; Luc., VI, 14-16; Act., I,13.





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A ordem em que se sucedem os outros nomes varia de um para outro, mas em todos eles, como Judas, o traidor, fecha sempre a enumeração, assim Pedro, invariavelmente, ocupa o primeiro lugar, o lugar de honra. Nem é casual coincidência. S. Mateus observa expressamente: Primeiro, Simão, que se chama Pedro. Primeiro, em que? Em idade: Nenhum indício positivo o insinua, nem a ancianidade foi certamente o critério adotado pelos historiadores sagrados que alteram a ordem dos outros nomes e mencionam João antes de outros apóstolos mais idosos. Prioridade de vocação? Tão pouco, em que pese ao Sr. Carlos Pereira.8 A eleição para o apostolado foi simultânea para os Doze.9 A vocação inicial de Pedro para discípulo, se foi anterior à de muitos apóstolos, não foi absolutamente a primeira. André e outro discípulo seguiram antes os passos do Messias.10 Um segundo chamado de Cristo feito nas bordas do lago Tiberíades e narrado pelo sinóticos apresenta para os quatro apóstolos Simão, André, João e Tiago uma simultaneidade moral que não permite estabelecer nenhum prioridade cronológica.

Voltemos ainda ao ministério de Cristo. Quando nas circunstâncias mais solenes de sua vida, - na ressurreição da filha de Jairo, manifestação da sua onipotência, na Transfiguração do Tabor, irradiação de sua glória, na agonia do jardim das oliveira, mistério de suas dores, - Jesus escolhe, como testemunhas a três dos seus apóstolo, Pedro é ainda invariavelmente nomeado em primeiro lugar.11 às vezes, todo o colégio apostólico é compreendido pelo historiador sagrado numa expressão coletiva; só Pedro é singularmente designado: “Pedro e os que o acompanhavam", nem mais nem menos como dizem de um rei e o seu séquito, de um chefe militar de sua escolta: “Davi e os que o seguiam, o centurião e o que o acompanhavam”.12

Não cabe, pois, dúvida, alguma. Manifestamente S. Pedro aparece-nos como o apóstolo principal; entre os seus companheiros gozava de uma preeminência incontestável. Era este um simples fato ou também um direito? Era, como pretendo o Sr. Carlos Pereira, uma simples ascendência moral devida às qualidades do seu
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8. “Sendo o apóstolo mais antigo (7) e de uma temperamento arrojado era ele no Colégio apostólicos o primus inter parews”., p. 211.

9. Matth, X, 1; Marc., III, 13-15.

10. Joan., I, 35-42.

11. Marc., V, 37; IX, 12; xiv, 33 e lugares paralelos.

12. “Simon ET qui cum illo erant ., Marc., I,36; “Daivid et qui cum eo erant”., Marc., II, 25; “Centurio et qui cum eo erant”, Matth., XXVII, 54; cfr. Luc., VIII,45; IX, 32; Act., II, 14; V, 29; Marc., XVI, 7.






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caráter e análogo ao “primado moral que exercem espontaneamente líderes das câmaras deliberativas, ou os deputados que se impõem pelo seu caráter e influência?” p. 211. Ou era, pelo contrário, uma superioridade querida por Cristo, sancionada pelo seu beneplácito, firmada nas suas promessas? Abramos o Evangelho e saibamos ler.

Evidentemente, não há falar aqui de uma supremacia de jurisdição efetivamente exercida por Pedro, durante e vida mortal do Divino Mestre. Jesus vivo e presente entre os discípulos, era o seu único e natural superior. O que importa determinar é se Cristo havia prometido um verdadeiro primado de jurisdição a algum dos Doze e se as expressões registradas pelo evangelista não são mais que os reflexos dos raios desta futura primazia.

Impossível, dizem os adversários do Papado que, sem perder tempo, já o querem impugnar no primeiro dos papas. Uma ascendência jurídica prometida pelo Mestre não se concilia com as contendas dos discípulos sobre qual deles era o maior, menos ainda se harmoniza com os ensinamentos explícitos do Salvador que condena qualquer prelazia no Colégio apostólico. Um fato e uma doutrina - eis o que nos opõem. Analisemos o fato e expliquemos a doutrina.

Como concordar a altercação dos discípulos com a promessa de uma primazia feita por Cristo a Pedro? Uma questão dirimida pelo Salvador, podia ainda ser objeto de controvérsia entre os Doze? Fora mister não conhecer a rudeza dos apóstolos para ver aí dificuldade séria. Quantos ensinamentos ouviram eles, claros, repetidos uma e muitas vezes, sem compreender! Quantas vezes não insistiu o Messias no caráter espiritual do seu reino! E poucos momentos antes da Ascensão não se sai um dos discípulos com a pergunta impertinente: “É agora, Senhor, que ides restituir o reino de Israel?”13 Haverá no Evangelho profecia menos equívoca, mais inteligível, mais insinuada pelo Salvador, que a de sua paixão e morte? “É necessário que o Filho do Homem sofra, que seja reprovado pelos Anciãos, Príncipes dos Sacerdotes e Escribas, que seja posto à morte e ao terceiro dia ressuscite”14 A predição foi renovada insistentemente em outras ocasiões, adumbrada em mil lugares diversos. Mas aquelas almas toscas que sonhavam com os triunfos temporais do messianismo vulgar eram refratárias ao escândalo da cruz.
Quando se realizaram os vaticínios do Mestre,
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13. Act., I, 7.

14. Luc., IX, 22; cfr.. Luc., IX, 44; XVIII, 31-33.





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perturbadas e abatidas, no que devera ser um reforço de prova da divindade do Messias, viram só o naufrágio de todas as suas esperanças. A mensagem pascoal da ressurreição encontrou-os ainda humilhados e incrédulos: stulti et tardi corde ad credendum!15


No nosso caso, a explicação é ainda mais simples. As palavras de Cristo a Pedro encerravam apenas, como veremos uma promessa.16 Seguiu-as, a breve trecho, uma graves repreensão do Senhor ao mesmo apóstolo, que, voltando a pensamentos humanos, tentava dissuadi-lo das humilhações da cruz. Que de mais natural, portanto, que pensarem os outros tratar-se apenas de uma promessa condicionada, revogada logo pelo severa admoestação de Cristo? A sucessão do primado achava-se destarte novamente aberta às suas ambiciosas esperanças. Oh! Como transparece aqui a psicologia da nossa frágil natureza humana Somos espontaneamente inclinados a crer quando agrada e lisonjeia as nossas ambições secretas. A mesma evidência quando contraria os sonhos dos nossos íntimos desejos: não vinga entrar-nos na alma. Imbuídos de preconceitos judaicos sobre a temporalidade do reino messiânico, os discípulo afagavam com amor a esperança das honras e do poderia terreno. Preferidos aos demais pelo Messias, nenhum, talvez, havia entre eles que, de si para si, não tivesse entressonhado com alguma dignidade futura, com alguma pasta ministerial do reino restaurado de Davi. E um dia, quando a mãe de João e Tiago, na simplicidade impolítica do seu afeto materno, ousou abertamente pedir ao Senhor que reservasse para os filhos os dois primeiros lugares ao lado do seu trono, levantou-se na roda dos companheiros um rumor geral de indignação e protesto.17 A petição imprudente ferira vivamente as ambições rivais que mais de um nutria com secreta complacência. Que muito, pois, que as palavras promissórias do primado, encontrando naquelas almas ainda não visitadas pelo Divino Espírito tão resistente barreira psicológica, fossem pouco a pouco negligenciadas e esquecidas a ponto de, ainda na última ceia se acederem novamente entre os discípulos as porfias de prelatura? Descerá mais tarde sobre eles o Espírito Santo, Espírito de verdade e de amor de luz e de caridade, prometido por Cristo aos seus apóstolos para
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15. Luc., XXIV, 25.


16. Engana-se CARLOS PEREIRA QUANDO SUPÕE TER Cristo “já nomeado Pedro, primaz”, p. 237. Não o havia nomeado, mas só prometido aedificabo... dabo. A palavra aqui empenhada cumpriu-a o Senhor depois da ressurreição. Cfr. Joan., XXI.


17. Matth., XX, 24.





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sugerir-lhes quanto lhes havia ele ensinado. Depois da vinda do Paráclito já não haverá entre os Doze rivalidades nem contendas sobre qual deles será o maior”. Apóstolos e fiéis serão um coração só uma só alma sob o poder supremo de Pedro.


Mais simples ainda é a explicação da doutrina de Cristo. “Entre os gentios, os reis exercem dominação sobre os súditos. Entre vós não há de ser assim; antes, o que é maior entre vós faça-se como o mais pequeno e o que manda [logo há de haver quem manda!] como o que serve"18 Quis, porventura Cristo, com estas palavras excluir qualquer jurisdição entre os apóstolos? De modo nenhum. O que elas encerram, sim, é um ensinamento novo, um ensinamento profundo sobre a noção de autoridade. Para os pagãos a soberania era uma ostentação honorífica, uma distinção mundana, uma dominação férrea sobre os súdito escravizados. Nada disso há de ser o poder em mãos cristãs. A autoridade é um ministério, um serviço público, é, antes de tudo, um dever, o dever de consagrar-se como servo ao bem comum dos governados. Longe, pois o fausto, longe as honrarias fofas que só lisonjeiam a vaidade e o orgulho de quem as recebe. O autoritarismo pagão, isto é, a pretensão de impor, a todo o transe, o próprio capricho, deve ceder o lugar à verdadeira autoridade que só tem razão de ser nas necessidades e exigências do bem público.19 Eis o novo e profundo conceito inculcado pelo Divino Mestre. Equivalem estas palavras as eliminar o poder de jurisdição numa sociedade legitimamente constituída: Já o dissemos, de modo nenhum. Quereis a prova? Lede alguns versículos abaixo e vereis que Cristo promete aos Doze uma situação privilegiada entre os fiéis: os Doze se assentarão um dia em doze tronos para julgar as tribos de Israel. Continuais a ler algumas linhas e ouvireis o mesmo Cristo conferir a um só a missão de confirmar os seus irmãos na fé. É uma autoridade no sentido cristão da palavra, um ministério para o bem público dos fiéis, e, no entanto, é uma prerrogativa concedida a um só.
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18. Luc., XXII, 25-27. Na hipótese protestante, Cristo houvera posto muito mais simplesmente termo à contendo entre os discípulos, dizendo-lhe: sereis todos iguais. Em vez, porém, de insinuar a paridade, insiste sobre a primazia: o que é maior. E aduz comparação consigo mesmo.

19. A S. Pedro aproveitou a lição divina de Jesus. Vede como ele nos descreve o múnus do superior eclesiástico: “Apascentai o rebanho de Cristo que vos foi confiado, tende cuidado nele, não por força, mas espontaneamente segundo Deus, nem por amor do lucro vergonhoso, mas de boa vontade, nem como se quisésseis ter domínio sobre a herança do Senhor, mas fazendo-vos de boa vontade o modelo do rebanho. E quando aparecer o príncipe dos pastores recebereis a coroa incorruptível da glória”. I Petr., V, 2-4.






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O discípulo privilegiado é Pedro. Duvidais ainda? No mesmo trecho de S. Lucas, a fim de exemplificar a lição que acabara de dar, Jesus aplica a si próprio a regra da humildade. “Qual é maior, o que está à mesa ou o que serve? Não é porventura o que está à mesa? “Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve”. Jesus que assim fala é o mesmo que afirmou categoricamente: “Vós me chamais de Mestre e Senhor e dizeis bem: porque o sou”.20 Dirá agora o nosso protestante que no Filho de Deus não havia verdadeira autoridade mas só “a superioridade moral do mais humilde”? p. 238.


A supremacia de Pedro no colégio apostólico é, pois, uma realidade evidente. Só uma investidura assegurada pela promessa de Cristo pode explicar como, no seio das ambições rivais dos discípulos, Pedro gozasse daquela preeminência atestada unanimemente por toda a história da vida de Jesus. Reconhece-o a própria crítica liberal de A. LOYSI: "Parmi les Douze il y en avait un qui ètait le premioer, non seulment par la priorité de sa conversion ou l'ardeur de son zèle, mais par une sort de désignation du Maître, qui avait èté acceptée, e dont les suites se font sentir encore dans l'histoire de la communauté apostolique. C'était lá une situation de de fait, crée en apparence par les péripéties du ministère faliléen, mais qui un certain temps avant la Passion se dessine comme acquise um comme ratifiée par Jésus".24


Ainda, pois, que não tiveram outros motivos, já nos fora lícito conjeturar com grande probabilidade uma designação de Pedro para futuro chefe da Igreja, feita pessoalmente pelo próprio Salvador. Mas temos textos formais e explícitos, que excluem toda a dúvida. Quanto até aqui dissemos tem por alvo inculcar a verossimilhança desta promessa, inferida de toda a narração evangélica e, aos mesmo tempo, mostrar como a perícope de S. Mateus que passaremos logo a estudar, longe de se achar “em manifesto antagonismo com todo o Novo Testamento”, p. 245, ou bloqueada pelo silêncio universal das Escrituras Sagradas", p. 214, como pretende o Sr. CARLOS PEREIRA, muito naturalmente se enquadra no contexto geral dos Evangelhos, formando um todo harmônico, homogêneo e coerente.


A grande promessa. – Evoquemos esta cena tão simples quão majestosa, que teve por teatro a cidade de Cesaréia de Filipe. Jesus interroga os seus discípulos: “Que se diz entre o povo do Filho do Homem?"
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20. Joan., XIII, 13;

21. A. Loisy, l’Évangile et l’Église, Paris, 1902, p. 90






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Os judeus haviam multiplicado conjecturas sobre a sua grandiosa personalidade. Para uns era o Batista, para outro Elias, Jeremias ou algum dos antigos profetas ressuscitados. “E vós”, torna o Mestre, “que pensais de mim?”“Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo”, responde Simão Pedro. E Jesus para recompensar a magnífica confissão do discípulo, pronuncia, solene estas palavras: "Bem-aventurado és, Simão Barjona, porque não foi a carne e o sangue que a ti o revelou, mas sim o meu Pai que está nos céus. E eu te digo, a ti, que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus. E tudo o que ligares na terra será ligado também nos céus, e tudo o que desates na terra será desatado também nos céus”.22




Texto capital, passo de significação transcendente. Sobre a sua clareza meridiana, não levantaram a menor sombra de dúvida quinze séculos de cristianismo. Mas a exegese protestante envolveu-a de névoa tão densa de sofismas, que para dissipá-la não nos pudemos furtar a um exame demorado, a uma crítica minuciosa. Analisemo-lo muito de sobremão.


Tu es Petrus... – Qual a interpretação literal destas palavras? Qual o seu valor demonstrativo?


Que pelo sentido literal imediato do texto Pedro seja constituído pedra fundamental da Igreja é o que não padece a mínima dúvida. Para iludir as momentosas consequências deste sentido óbvio e espontâneo costumam os protestantes da velha escola distinguir entre Pedro e pedra: o Pedro do primeiro membro, tu es Petrus, é o apóstolo; a pedra do segundo, super hanc petram, é Cristo. Sobre esta Pedra, não sobre Pedro, foi edificada a Igreja. – Distinção injustificada, ridícula, contrária às regras mais comezinhas da hermenêutica. Quem quer que leia despreocupadamente o passo de S. Mateus para logo se persuadirá que em todo ele Cristo só se dirige a Pedro: tibi dico, tu es, tibi dabo, quidquid ligaveris. Não há como isolar um inciso em que o Salvador entrasse a falar de si. Todos os membros do texto se articulam, se compaginam num todo cuja continuidade não é possível interromper sem lhe quebrar as harmonias divinas. E, senão, lede toda a perícope reconstituída à protestante: “E eu te digo: tu és Pedro e eu edificarei a Igreja
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22. Matth., XVI 16-19.





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sobre mim... e eu te darei as chaves dos céus e tudo o que ligares etc.”


Mas temos, se é possível, razão mais formal e peremptória. Cristo falava aramaico. Ora, em aramaico, nenhuma diferença verbal entre Pedro e pedra. Traduzido à letra, o texto original de S. Mateus diria: Tu és Pedra (kefa) e sobre esta pedra (Kefa) edificarei a minha Igreja.23. Desfaz-se assim a última aparência de arrimo a que se abotoa, desesperada, a exegese protestante. Como pode, com efeito, afirmar razoavelmente a diversidade na significação de duas palavras idênticas, usadas na mesma frase e referindo-se uma à outra por um demonstrativo enfático? Se na frase – tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja – pedra não designa, antes e depois, o mesmo sujeito, ponhamos um cadeado nos lábios, quebremos as penas porque não haverá palavra falada ou escrita que possa traduzir com fidelidade o nosso pensamento.


Mais. Se não era Simão esta pedra fundamental da Igreja por que lhe mudou Cristo o nome em Pedra? Tu te chamarás Cefas, isto é, Pedra, disse-lhe Cristo no primeiro dia que o viu; 24 tu és Pedra, repete-lhe Cristo agora. Porventura os nomes impostos por Deus são palavras vazias, figuras sem significado, sombras sem realidade? E que outra coisa seria esta Pedra que não é pedra? Vede o ridículo da interpretação reformista: Simão, tu és pedra, mas não edificarei sobre ti a minha Igreja porque não és pedra, senão sobre mim. E estas palavras nos lábios de Cristo seriam uma recompensa da confissão de Pedro, uma remuneração grandiosa que arrancara do coração divino aquele: bem-aventurado és tu Simão Barjona? Não. Decepção amarga exprimiriam elas, dignidade balofa, prêmio irrisório, que se reduziria a um nome oco, a uma vacuidade sonora.
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23. Essa identidade verbal conservaram as antigas traduções siríacas (cureton e peshitto), a persa, a árabe, cujas línguas, como o francês atual, permitem uma versão à letra. O tradutor grego de S. Mateus preferiu no primeiro membro o masculino Petros que tem o mesmo radical que petra e significa também pedra, rocha, porque a desinência masculina melhor se adaptava a um nome de homem. Os helenistas chamaram Pedro a Cephas; o tradutor seguiu o uso corrente.

24. Joan., I, 42.






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Ouvi a exegese do Sr. CARLOS PEREIRA: “Eu também confesso o teu nome: tu és Pedro [Cristo não confessa o nome de Pedro. Impõe-no; tu és] e sobre esta rocha que acabaste de assinalar na confissão que meu Pai pôs em teus lábios e de que tens a honra de ser um fragmento25 [toda esta frase só tem um defeito: não se achar no texto, ser inventada de raiz pelo exegeta gramático] edificarei a minha Igreja, etc." p. 217. Como?! Tanto aparato de circunstâncias, tanta gravidade de palavras, tanto solenidade de fórmulas para dizer que Pedro será... “um fragmento”, uma pedrinha no grande edifício do reino de Deus! Mas “fragmento”, pedrinha, são todos os fiéis, todos os membros da sociedade cristã. E qual seria neste caso, o significado desta cena, uma das mais graves, das mais majestosas, das mais solenes do Evangelho? Algo parecido como parturiunt montes!... Não! Não! Ante a exegese protestante revolta-se a consciência cristã num brado da mais justificada indignação.


Mas, insiste o Sr. Carlos, só Cristo é pedra. Provam-no à saciedade outros passos da Escritura. E aqui cita o Antigo e o Novo Testamento, Isaías e Mateus, Pedro e Paulo! – E quem o nega? Quem jamais contestou que Cristo era a pedra viva, a pedra angular do cristianismo? Não é este o objeto da controvérsia; trata-se de saber se o pescador da Galiléia foi também por Cristo designado como pedra da sua Igreja. Aqui bate o ponto. Abro o Evangelho e leio que de si afirma o Salvador: “eu sou a luz do mundo”26 Consoante à regra do nosso exegeta concluiremos sem hesitar: logo, nenhum apóstolo é, ou pode ser, luz do mundo. Abro novamente o livro sagrado e caem-me os olhos sobre estas outras palavras proferidas igualmente pelo Salvador: “vós sois a luz do mundo” 26ª Contradição? Nenhuma. Há luz e luz como há pedra e pedra. Luz, Cristo, por essência, por natureza, por brilho próprio como a do sol. Luz, os apóstolos, por missão, por participação, por viva reflexão de alheios esplendores, como a dos planetas. Assim, pedra Cristo, pedra fundamental, pedra primária sobre cuja solidez divinamente inconcussa repousa inabalável todo o edifício religioso do cristianismo. Pedra Simão, por vontade de Cristo (tu és pedra),
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25. Fragmento de quê? Da confissão passada? E que vem a ser fragmento de uma confissão? Da rocha Cristo? E que significa Pedro, fragmento de Cristo? Do futuro edifício da Igreja: Interpretação menos ábsona, mas que nenhuma análise, lógica ou gramatical, logrará deduzir do texto pereiriano.

26. Joan., VIII, 12.;

26ª. Math., V, 15.






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pedra Simão, também ela inquebrantável e inamovível por fiança divina (as portas do inferno não prevalecerão). Cristo, pedra invisível; Simão, pedra visível, porque toda a sociedade visível e externa deve apoiar-se num poder supremo também visível e externo. Magnificamente S. Leão: “Cum ergo sim inviolabilis Petra, ego lapis angularis qui facio utraque unum, ego fundamentum praeter quod nemo aliud ponere potest, tamen tu quoque Petra es, quia mea virtute solidaris, ut quae mihi potestate sunt propria sint tibi mecum participatione communia”.27


Se assim é, volta à carga o infatigável gramático, também “os outros Apóstolos e os Profetas são chamados englobadamente, “fundamento”, são do mesmo modo pedras secundárias e, assim sendo, lá se vai o primado de S. Pedro e, com ele, as pretensões papais!” p.220. – Devagar! A tarefa não é tão fácil como pensa o alumiado crítico. Cite-me o Sr. Carlos um só texto, onde Cristo tenha dito a outro apóstolo que seria “a pedra sobre a qual ele haveria de construir a sua Igreja”. Um só! O que há, sim, são outros passos da Escritura em que a palavra “fundamento” é ora atribuída exclusivamente a Cristo, ora aplicada a todos os apóstolos juntos, mas num sentido muito diverso. Assim escreve S. Paulo aos coríntios: “Segundo a graça, que Deus me deu, tenho como sábio arquiteto lançado o fundamento: e outro edifica sobre ele. Veja, porém cada qual como edifica. Porque ninguém pode por outro fundamento senão o que foi posto, que é Jesus Cristo”.28


Antes de tudo, isolando o texto como faz o nosso autor, diria apenas S. Paulo que Cristo é o fundamento e que fora de Cristo não há excogitar outro fundamento, dele independente ou a ele contrário; de modo algum, porém, excluiria que Cristo tivesse determinado um fundamento secundário, dependente, como deixamos explicado. Mas não é este o sentido das palavras do Apóstolo. O assunto de que fala no contexto é a instituição da vida cristã baseada na doutrina de Cristo, fora da qual não pode haver outro fundamento de nossa vida religiosa. Sobre este alicerce insubstituível deve cada um levantar o edifício da própria perfeição, edifício que poderá ser de ouro, de prata, de gemas preciosas, de madeira, de ferro ou de palha.29 Este único fundamento, Paulo, como sábio
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27. S.Leo Magnus, Serm. 4 suae assumpt. (ML, LIV, 150).

28. I Cor., III, 10-11.

29. Loc. Cit., V, 12.






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arquiteto, lançara-o com a sua pregação. Como se vê, são coisas mui diversas: o fundamento de uma doutrina e o fundamento de um organismo social. Aquele é uma verdade capital, este, uma autoridade suprema. O texto, pois, não é ad rem .
Observação análoga se pode repetir a respeito do passo seguinte da epístola aos efésios: “Vós sois edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo o mesmo Jesus Cristo a principal pedra angular”.30 Como acima, trata-se também de um fundamento doutrinal. Aliás, como poderiam os profetas ser fundamento da vida cristã? Cumpre ainda notar que não afirma necessariamente S. Paulo serem os apóstolos fundamentos, senão que os fiéis devem edificar sobre o fundamento lançado pelos profetas e apóstolos.


Nenhum desses lugares ou de outros análogos, que talvez ainda se pudessem aduzir, invalida, pois, a força de nosso texto. Com apaixonada sofreguidão folhearam os protestantes as sagradas Escrituras à cata de frases que dessem pega a um sofisma e onde quer que encontraram a palavra “fundamento” ou outra semelhante julgaram descobrir uma clava invencível para convelir a rocha do papado. Baldadas diligências! Não há uma só passagem do Novo Testamento em que se dê o nome de pedra a qualquer apóstolo fora de Simão. Não uma só passagem da Sagrada Escritura em que, tratando-se da organização social da Igreja de Cristo, se afirme coletivamente de todos os apóstolos ou singularmente de qualquer deles a prerrogativa de fundamento.


E isto nos basta. Não há por que insistirmos mais na exegese literal. É, aliás, tão esdrúxula, tão ábsona a interpretação dos velhos protestantes a distinguirem entre Pedro e pedra, que hoje já a desampararam quase todos os críticos heterodoxos. Henrique Monier qualifica-a “d’interpétation par trop alambiquée et tendancioeuse”31 Os próprios protestantes conservadores perfilham já uma hermenêutica mais racional. “Nous nous placons encore ici sur le terrain qui leur est le plus favorable [ao católico] parce qu’il est
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30. Ad Ephes., II, 20. Podemos ainda observar que tanto na epístola aos efésios, como na primeira aos coríntios, S. Paulo emprega não o termo PETRA, mas Temelion. Temélion, diz-se do fundamento formado pelas pedras que constituem a substrutura do edifício, petra da rocha preexistente sobre a qual se levanta a construção. Petra só se encontra aplica a Pedro e a Cristo, mtiolene também aos apóstolos no sentido que deixamos declarado no texto.

31. M.Monnier, Notion de l’apostolat. P. 133.






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à nos yeux le seul vrai; et nous admettons que ce passage renferme une promesse spéciale fait à Sait Pierre”32De idêntico sentir é Sahn.33. Kuinoel, há mais de um século, comentando o texto de S. Mateus concluía: “Mal entenderam muitos intérpretes por πέτρᾳν ou o próprio Cristo ou a profissão anterior de S. Pedro. A tão contorcidas interpretações não teriam recorrido se os papistas, das palavras, καὶ ἐπὶ ταύτῃ τῇ πέτρᾳ referidas e Pedro, não quisessem sem razão (?) vindicar para os sucessores de Pedro uma autoridade e prerrogativa divina”.34 Quase ao mesmo tempo escrevia outro protestante, Rosenmuller: Pedro não é nem a confissão de Pedro nem Cristo... (interpretação que o contexto não admite), mas o próprio Pedro. Falando siríaco, Cristo não empregou nenhum apelido, mas em ambos os incisos disse Cefas, como em francês o termo pierre designa tanto o substantivo próprio quanto o apelativo”.35 Escusava, pois, o Sr. Carlos Pereira de oferecer ao público brasileiro uma nova edição desta exegese morta de senilidade precoce que os seus próprioS correligionários mais conceituados e eruditos nos estudos bíblicos são os primeiros e refugar como ridícula, antigramatical, ilógica, filha de preconceitos dogmáticos e tendências sectárias.


Até aqui da significação literal do texto. Agora ao seu valor demonstrativo. As palavras de Cristo encerram realmente a promessa do primado? Sobre este ponto não nos demoraremos tanto. A sua clareza dispensa-nos de longos comentários. A própria tática dos adversários que se deslocam em esforços para torcer-lhe a significação literal não nos está a insinuar que, uma vez estabelecida esta, a conseqüência católica é inevitável? Com efeito, o primado aí está expresso sob o véu transparente de uma metáfora natural tão simples quanto óbvia.
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32. P. F. JALACHIER, De l"Eglise, Paris 1899, p. 219.

33. ZHN, Das Evangelium des Matteus, Leipzig, 1905, PP. 536-547.

34. CHR. Th. KUINOEL, Evangelium Mattheai, Lipsiae, 1807, p.425.

35. J. G. ROSENMULLER, Scholia ind N. T., Norimbergae çççç1815, I. 336. Rejeitam igualmente esta interpretação contorcida os seguintes protestantes: F. W.. J. VON SCHELLING, Philosophie der Offenbarung, Stuttgart 1858, II, 301, H. A. W. MAYER, Kritisch-exegetischer Commetar uber das Neue Test., Das Math.-Evangelim, Goettingem=n 1898, 197; TH. Keim, Geschichte Jesu Von Nazara, Zurich 1871, II, 550-2; KARL V. HASE, Geschichte Jesus (2) Leipzing 1891, 494; H. H.; HOLTZEMANN, Lehrtuch der neutestamentlich Thologie (2). Tubingen, 1911, I, 269-270; O. PEREIDERER, Das Urtchristentu, Belim, 1902, I, 582-3. Do mersmo modo: WEISS, KEIL, MANSET, BLOOMFIELD, MARCH, THOPSON, ALGERD, etc., etc.







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Mas eis que surde logo pela proa o Sr. Carlos Pereira apostado a semear de parcéis a linha reta da nossa rota para não nos deixar vogar um instante a pano cheio. Uma metáfora? Mas “é princípio comezinho de hermenêutica e do bom senso que texto figurados, linguagem metafórica, expressões tropológicas, susceptíveis de interpretações várias não pode servir de títulos válidos de nomeação para cargo nenhum”, p. 214.


Confesso, não esperava esta dificuldade de um gramático, que por obrigação de ofício é mestre diplomado na ciência da linguagem. Quem ainda cuidou que expressão metafórica fosse sinônimo de expressão ambígua? Abro um livro de história: “Por morte de Eduardo VII passou o cetro de Inglaterra para as mãos de Jorge V”, “A coroa de Áustria não resistiu ao choque da grande guerra”, “Foi executado o delinquente, cabeça da revolta”. Quem pudera ver nestas e em mil outras usitadíssimas locuções um perigo de anfibologia? A linguagem metafórica, como a linguagem própria, pode exprimir com a mesma exatidão, com o mesmo rigor e, não raro, com mais viveza, o conteúdo de um pensamento. Isto é o que ensina “um princípio comezinho de hermenêutica e de bom senso”. Isto é, sem dúvida, o que ensina o ilustre professor quando não faz polêmica sectária mas, instruindo os seus discípulos, se deixa levar pelos princípio do bom senso e pelas regras elementares da hermenêutica. Se a metáfora empregado é óbvia, se o tertium comparationis que funda a analogia do tropo, estão ao alcance dos leitores ou dos ouvintes, a expressão do pensamento é clara, não há duplicidade de sentido nem risco de equivocação.36 Estas condições são preenchidas nas metáforas de Cristo? A ver


Pedro é a pedra fundamental da Igreja. Logo, Pedro será para a sociedade cristã o que é o fundamento para o edifício. Ora, o fundamento é essencial ao edifício, o fundamento dá-lhe firmeza e estabilidade, o fundamento é indispensável à conservação de toda a superestrutura e de cada um de seus complementos, o fundamento, sustentando todas as articulações, consolida-lhe a travação, reune-lhe as diferentes partes na coerência robusta da unidade
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36. Cumpre ainda não esquercer que a linguagem metafórica era de uso corrente entre os povos orientais, naturalmente poetas imaginosos. Jesus adeptou-se `qs exigências do meio judaico. Seus ensinamentos revestiam quase sempre forma figurada. Não lhes ensina senão em parábolas, diz=no o Evangelista. Para entendermos, pois, os ensinmaneto sdo Divino Mestre devemo-nos reportar à época e aos usos do tempo e do lugar em que viveu. O simobolismo deve interpretar-se historicamente.





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arquitetônica. Tomai agora um organismo social. Quem lhe dá unidade aos membros dispersos? Que força os retém no seu seio ou os separa de sua comunhão? Donde lhe advém a solidez, a firmeza, a estabilidade? Que elemento lhe é talmente essencial que, em faltando, não há nem pode haver sociedade: Qualquer jurista responderá sem hesitar: o poder, a autoridade suprema do corpo social. Logo, Pedro é a autoridade suprema da Igreja fundada pelo divino Mestre. Quem está com Pedro está com a Igreja; separa-se da Igreja quem se separa de Pedro. Ubi Petrus, ibi Ecclesia (S. Ambrósio). Fora de Pedro não há Igreja de Cristo. Com Pedro a firmeza, a unidade, a força, a vida. Sem Pedro, ou contra Pedro, a instabilidade, a discórdia, o esfacelo, a dissolução, a morte.












As chaves do reino dos céus – É a segunda metáfora usada por Cristo. Possuir as chaves de uma casa, de uma cidade, de um reino é enfeixar nas mãos o direito de abri-los ou fechá-los, de admitir ou rejeitar estranhos, é, numa palavra, ter o poder de dono da casa, de governador da cidade, de soberano do reino. Entre os orientais suspendiam-se as chaves aos ombros como símbolos da autoridade. A figura era, pois, de uso corrente e, portanto, de inteligência fácil e cessível. Aos legados de Fernando I respondeu Solimão: “as chaves da Hungria penderão dos meus ombros”. Era talvez uma reminiscência da figura bíblica. Já a lemos em Isaias para indicar o poder do mordomo, do prefeito de palácio, isto é, da primeira autoridade depois da real. Na linguagem do profeta são as chaves o emblema da investidura de Eliacim: “Impor-lhe-ei aos ombros a chave da casa de David e se ele abre ninguém fecha e se ele fecha ninguém abre”.37 No Apocalipse recorre o vidente de Patmos à mesma imagem expressa em palavras idênticas para designar o poder soberano de Cristo.38
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37. Is. XXII, 22

38. Apoc., III, 7: “Não é mistério para ninguém, observa o Sr. Carlos Pereira, que toda a chave serve para abrir e fechar. As “chaves do Reino dos Céu” servem naturalmente para abrir e fechar? Materialmente, sim; simbolicamente, não. Que na sua realidade concreta as chaves abram e fechem, é verdade, creio eu, que ninguém porá em dúvida. Mas Cristo não deu a Pedro um molho de chaves nem o reino dos Céus tem portas.. A expressão é simbólica e o seu simbolismo deve ser interpretado tal qual é, não qual poder ser. Para explicá-lo o ilustre gramático fechou os ouvidos à voz da história e do bom senso, para só dar audiência às sugestões tendenciosas de um sectarismo acanhado. Ouça Wiseman “La remise dês clefs a toujours été Le symbole de la transmission de l’autorité soucraine Du commandement, C’est en ce sens qu’elle est employée dans l’Ecriture... Chez les peuples orientaux la liaison Du pouvoir réel avec lês emblêmes qui em sont la figure, est três fortement marquée... La même analogie existe aussi, quoique peut être avec , moins de force, chez lês nations européenns. Car lorsqu’il est dit que les clef d’une ville ont été remises à quelqu’un para son souverain, est-il jamais venu à la pensée d’untendre par là qu’il lui ait été seulment donné Le pouvoir d7en ouvrir et fermer lês portes aux étrangers et aux nouveaux benus? Et quand on dit que lês clefs d'une forteresse ont été livrées à um conquérant, qui ne comprend à l’instant même que la possession de cette place forte lui est également transférrée?... Le considérer autrement que comme investi de l’autyorité souveraine à son égar”. WISEMAN, LEM migne, Démonstations évangliques, 1852, t.XV, PP. 918-919.





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Nenhuma ambiguidade, pois, na metáfora evangélica, Pedro será o clavígero do reino dos céus. E como em outras eras o prefeito do templo e do palácio, em nome do rei e principalmente na sua ausência, inspecionava, administrava e governava os negócios do reino, assim na sociedade fundada por Cristo, Pedro será o seu vigário, governá-la-ás em seu nome e durante a sua ausência e se ele abrir ninguém fechará e se ele fechar ninguém abrirá.

Opõe o Sr. Carlos Pereira que "as chaves que conferem o poder de ligar e desligar, de perdoar e reter pecados, foram dadas conforme os antigos e muito modernos, aos apóstolos e a todos os cristãos, que pertencem à comunidade eclesiástica. Tem sido isto demonstrado, fora de toda a dúvida, pelo mais ardentes amigos amigos do Papados tais como Du pin, Calmet, Maldonat e Alexandre, p. 223. - Nestas linhas o nossos gramático falseia o sentido de uma expressão e comete uma assacadilha.

Dizem alguns Padres que na pessoa de Pedro deu Cristo as chaves a toda a Igreja, não no sentido protestante, mas sim para significar que o poder das chaves não foi um privilégio conferido a Pedro como pessoa particular.39 Recebeu-as o apóstolo como homem público, como chefe da Igreja, para o bem universal da comunidade cristã. A sociedade dos fiéis não é aqui subjectum inhaesionis, como se exprimem os filósofos, mas o subjectum utilitatis. Todos os poderes de que é revestida a autoridade num grupo socialmente organizado não lhe são conferidos para sua vantagem individual senão em vista do bem público. É princípio comezinho de direito natural. Isto e só isto quiseram dizer alguns Padres com a expressão torcida pelo gramático.

A assacadilha é a imputação aleivosa a doutores católicos de opiniões que nunca professaram. É balda frequente do Sr. Carlos Pereira citar e criticar autores católicos que não conhece nem pela
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39. Por exemplo, TERTULIANO: “Memento coeli claves, hic, dominum Petro et, per eum, Eccleaiae reliquisse”. Adversus Gnósticos 10 (ML, II, 142).




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lombada de suas obras. MALDONADO e CALMET aqui alegados em favor da exegese protestante refugam-na abertamente e ensinam precisamente o contrário. MALDONADO assim conclui o seu raciocínio exegético: "Solus ergo Petrus eas claves habuit quibus ita aperiebatur um nemo clauderet, ita claudebatur ut nemo aperiret".40 CLAMET: "Clavis supremam potestatem significat... Similem in Ecclesia auctoritatem Petro promittit Christus quam apud Reges Juda Eliacimo Isaias".41
Poder de ligar e desligar - As palavras que se seguem no testo de S. Mateus explicam com maior clareza ainda, se é possível, a natureza da investidura prometida a Simão Pedro: "Tudo o que ligares na terra será ligado também nos céus, tudo o que desligares na terra será desligado também nos céus". A autoridade liga e desliga com leis, preceitos e penas. Toda a Lei impõe um obrigação e toda a obrigação (obligatio) é um ligame da consciência. A Pedro promete Cristo a plenitude do poder soberano (quadquemque: tudo) e a fim de realçar a eficiência deste poder soberano acrescenta que Deus confirmará e ratificará nos céus as sentenças do apóstolo. Não se podia de maneira mais peremptória e decisiva significar a amplitude, a eficáia, e independência relativa a qualquer outro poder humano, da suprema magistratura do futuro chefe da Igreja. Suas sentenças são decisões autoritativas e jurídicas, engendram o direito e o dever, não podem ser rebogadas por nenhuma potestade terrena.. No reino de Cristo e em todas as coisas que são da alçada da sociedade religiosa, Pedro é autoridade suprema, universal, inapelável.
Como fugir à evidência irresistível destas conclusões? Ao senhor Carlos Pereira não esqueceu nenhum subterfúgio por onde tentar a evsão. Sigamo-lo em todos estes meandros da sofística
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40. MALDONADO, Comment in Quatuor Evanglistas, Moguntiae, 1840, t. I, p. 468. Na página antecedente: “Quibus ego verbis [tibi dabo claves] contra haereticorum... opinionem principatu Petro datum esse contendo”. Mas de Maldonado o nosso gramático desconhece até o nome! O célebre exegeta espanhol, na sua pena, aparece trajado à francesa: já não é Maldonado, é Maldonat!

41. CALMET, comment, in h. l. commentarius in omnes libros V. et N. T. Augustae Vindelicorum 1760, t. VII, p. 181. Quanto a Du pin o Sr. Carlos Pereira não se dignou declarar-nos a qual deles se referia. A história de teologia conhece dois escritores deste nome, ambos iscados de galicanismo e jansenismo. O primeiro Du pin (1657-1719) viu a sua Nouvelle Bibliothèque proibida em Roma pelo Congregação do Índice. Du Pin, sênior (1783-1865), senador e várias vezes presidente da Câmara dos deputados, escreveu, entre outros trabalhaos, Lês libertes de l’Eglise gallicane (1824). Obra impugnada pelos próprios protestantes e condenada pelo arcebispo Bonald. Em qual dos dois viu o Sr. Carlos Pereira “um dos mais ardentes amigos do Papado”?





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protestante. A expressão "ligar e desligar", dis ele, citando Light-folt significa entre os rabinos proibir e permitir, declarar o direito, p. 227. - Não é concorde a opinião dos críticos a este respeito. Mas é o que não nos importa aqui deslindar ou decidir. O que nos cumpre é tirar a claro o sentido em que Cristo empregou a expressão.

Antes de tudo, pode ode termos “ligar e desligar”, mais que uma simples sentença declaratória, exprimir uma verdadeira decisão de caráter obrigatório e jurídico? Indubitavelmente, sim; a literatura antiga, profana ou judaica, subministra-nos provas evidentes. Na inscrição do túmulo de Isis, lêem-se, como refere DIODORO SÍCULO, OS SEGUINTES DIZERES: “Eu sou Isis, rainha desta região, e ensinada por Mercúrio; tudo o que eu ligar ninguém pode desligar. 41 Da literatura judaica citamos JOSEFO FLÁVIO, autor quase contemporâneo de Cristo. Falando da rainha Alexandra diz-nos: “Os fariseus insinuando-se aos poucos na intimidade da soberana mulher simples, chegaram a ter em mãos todo o governo, desterrando ou revocando do exílio a seu talante, ligando e desligando etc. 43


Temos, pois, uma expressão que não só de sua natureza pode exprimir uma verdadeira jurisdição, mas que efetivamente era usada pelos autores com este significado.

Resta-nos agora ver se de fato Cristo a empregou nesta última acepção.

Que entre os rabinos “ligar e desligar”, não tivessem outra força que a de uma declaração da lei, entende-se facilmente. Doutores particulares, sem nenhuma autoridade jurisdicional, suas decisões não podiam revesti caráter jurídico. Eram simples opiniões ou pareceres como as dos nossos casuístas e jurisconsultos, quando permitem ou proíbem um ato (ligam ou desligam) declarando=se lícito ou ilícito. Destarte se compreendem facilmente as locações judaicas: Schammai liga, Hillel desliga, no sentido de que o rabino austero dava uma interpretação rígida da lei, enquanto o mestre de Gamaliel preferia uma solução mais benigna. São pareceres particulares cuja força obrigatória não vai além da autoridade de um simples doutor a quem falece jurisdição para impor ou obrigar. Ponhamos agora a mesma expressão nos lábios de uma autoridade superior, de um chefe. Outro será o significado. Proibir
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42. osa gap egodeso oudeis dunatai lusai.

43. J. Flávio, de Bello Judaico, 1. I, c. 5.





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e permitir já não serão meros atos declaratórios, mas sim sentenças eficazes que fundam um direito, criam uma obrigação. É o nosso clavígero do reino dos céus, Pedro fora pouco antes designado chefe supremo eu ligar e desligar já não será de jurisconsulto, mas de soberano.

Outro argumento dissipará qualquer sombra de hesitação que. Porventura possa ainda obscurecer uma inteligência refratária à luz da verdade. Só duas vezes encontramos no Evangelho a expressão “ligar e desligar”, ambos em S. Mateus: a primeira, no passo que estamos a examinar, a outra no Cap. XVIII, 18, onde Cristo dirige aos apóstolos reunidos as mesmas palavras que antes dissera a Pedro: “tudo o que ligares na terra será ligado também nos céus etc.” Ora, evidentemente, neste lugar, para Cristo os termos “ligar e desligar” importam um poder soberano de jurisdição porquanto deles infere o direito de punir e de excluir eficazmente da comunhão da Igreja aos pecadores renitentes e contumazes. Se o teu irmão que pecar não ouvir a Igreja, trata-o como a gentio ou publicano (i. é, como pecador público incorrigível e separado da Igreja). “Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será igualmente ligado no céu”. 44 Mas nem é mister recorrer ao
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44. Matth., XXVIII, 15-18. Prevejo logo uma objeção na mente do leitor. Inútil dizer que para Carlos Pereira avulta logo como clava invencível contra o primado. Do cap. Lxviii, 18 de São Mateus que acabamos de citar se infere que o poder de ligar e desligar concedida antes a Pedro, foi depois estendido a todos os apóstolos. Na é, portanto, uma prerrogativa de Pedro, mas uma jurisdição comum ao colégio dos Doze. “Logo, conclui triunfante o nosso gramático, ruem por terra as altas pretensões do papado, baseadas na absurda primazia jurisdicional das chaves!. P. 226. Triunfo prematura! É certo que o poder das chaves foi outorgado no c. XVI só a Pedro: é certo que em toda a sociedade bem constituída não pode haver mais de uma autoridade suprema, independente; é certo ainda que no c. XVIII falando Cristo ao Colégio apostólico com Pedro repetiu no plural as mesmas palavras endereçadas antes singularmente a Pedro. Haverá incompatibilidade entre estas duas verdades? Nada menos. Um soberano diz a um general: “General, confio-te todo o meu exército. Tens planos poderes para dirigir energicamente a campanha e levar a pátria à vitória. Tudo o que fizeres para defender a nação desde já o sanciono como se por mim fora feito”. Dias depois fala o mesmo soberano ao estado Mario no meio do qual se acha o generalíssimo escolhido: “Confio-vos o meu exército. “Tendes plenos poderes para dirigir energicamente a campanha etc.”. Que hermenêutica sofista haverá aí que pretenda inferir das últimas palavras do soberano que já não há generalíssimo no exército e que a plenitude do comando foi estendida a cada um dos oficiais presentes? Que poderá sustentar sensatamente haver incompatibilidade entre os poderes do Estado Maior e a chefia de um só? Ninguém. Ambas as expressões são não só conciliáveis mas apresentam juridicamente toda a exatidão desejável? Diz-se em rigor de direito que um corpo moral possui todos os poderes de que se acha investido o seu chefe. Por que esquecer esta regra de senso comum quando se trata de interpretar o Evangelho para fantasiar contradições que não existem:? Os dois textos indicam um jurisdição comum a todos os apóstolos, a de ligar e desligar com sentença eficaz, mas deixam subsistir em toda a sua integridade a prerrogativa especial de Pedro que com o poder de ligar e desligar foi constituído exclusivamente Pedro fundamental da Igreja, pastor supremo do rebanho de Cristo. Não há palavras no Evangelho dirigidas aos apóstolos separados de Pedro; há-as e várias e de outro eficácia endereçadas a Pedro separado dos colegas. Poderíamos ainda acrescentar que a colação do primado feita como veremos logo, por Cristo exclusivamente a Pedro no Cap. XXI de S. João foi posterior à cena narrada no c. XVIII de S. Mateus: não há, portanto, a “precedência cronológica, p. 226, inventada pelo Sr. Carlos Pereira.




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paralelismo de outros textos. No próprio passo que interpretamos temos a prova mais inequívoca de que o poder outorgado a Pedro é verdadeiramente autoritativo e jurídico. Prossegue de fato o Evangelho: tudo que ligares ou desligares na terra será também ligado ou desligado nos céus. Deus promete ratificar as sentenças de Pedro. Uma obrigação por ele imposta, ipso facto é válida. As suas serão decisões de verdadeiro hierarca divinamente garantidas na plenitude de sua eficácia moral e jurídica. Não há, pois a menor dúvida que a expressão “ligar e desligar” equivale, nos lábios do divino Mestre, a um poder supremo de jurisdição na sociedade cristã.

Depois destas declarações fundamentais não há porque nos detenhamos mais em outras insignificantes objeções do adversário, que o leitor por poderá facilmente resolver. Acenemo-las apenas.

S. Pedro, como é sabido, foi o primeiro (sempre S. Pedro, o primeiro!) a pregar o Evangelho aos judeus e a acolher os gentios no seio da Igreja. “Nisto apenas consistiu o privilégio de S. Pedro no uso das chaves”, p. 226, conclui peremptoriamente o nosso comentador. – E quem lhe revelou? Onde o leu ele no Evangelho? “Cristo disse: tu és a pedra sobre a qual hei de edificar a minha Igreja”, e o fundamento de um edifício é estável, permanente, duradouro como o próprio edifício que sustenta. Carlos Pereira interpreta: “Pregarás duas vezes em primeiro lugar e com esta prioridade cronológica estão cumpridas as promessas do Salvador e realizadas as suas metáforas”. Cristo disse “tudo o que ligares etc.”, sem nenhuma restrição de tempo ou de espaço. Carlos Pereira corrige: “todo o teu privilégio consiste em abrir as portas da Igreja aos primeiros judeus e pagãos convertidos”. É assim que à interpretação racional dos textos se substituem os devaneios de uma fantasia apaixonada. Dizem depois que isto é livre exame, e dizem bem: livre de todas as regras de hermenêutica, livro de todas as peias da verdade, livre de todos os ditames da lógica. Sem os adminículos desta liberdade a interpretação racional do Evangelho mostra no texto de S. Mateus a promessa insofismável de um primado de jurisdição, feita a Simão Pedro.




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Investidura do Primado. – “Em resumo, uma passagem única, isolada, metafórica do Novo Testamento é a credencial divina que o Papado apresenta à consciência cristã da humanidade como o fundamento original dos seus direitos”, pp. 214-215.

Do três capítulos deste requisitório formulado pelo Sr. Carlos Pereira contra a origem divina do Papado parece-nos ter já satisfeito aos dois últimos. A passagem de S. Mateus não é isolada, funde-se harmoniosamente com o quadro evangélico num todo homogêneo e coerente. Seu caráter figurado em nada prejudica à perspicuidade do pensamento que exprime.


Mas será única? Que o fosse! – “Hão de convir que é intuitivamente contestável um título de tão fundamental importância que, em última análise, só tem em seu favor uma única declaração de Cristo”, p. 214. – Francamente, não tenho esta intuição. Crê o Sr Carlos Pereira na divindade de Cristo e na inspiração dos Evangelhos? Se não crê, estamos fora da questão; outro deverá ser o objeto da presente controvérsia que pressupõe provadas e admitidas estas verdade. Se crê, não basta uma palavra de Deus para firmar a mais importante das verdades, como 

um fiat bastou para a criação do universo? Cristo que merece fé se repete a mesma verdade três ou quatro vezes (bastam? Por que não mil ou duas mil vezes?); Cristo, cuja veracidade é “intuitivamente contestável” quando fala uma só vez – é uma contradição que raia pela blasfêmia. Não, Sr. Carlos Pereira, aquele período caiu-lhe da pena num momento de inadvertência, numa arremetida de mau humor antipapal. Retrate-o, que não é de cristão.



Mas o texto não é único. A promessa do primado, registrou-a S. Mateus, referiu-a S. Lucas (c. XXII,32) num texto que preferimos estudar a propósito da infalibilidade do papa. A investidura na grande dignidade narrou-no-la S. João no último capítulo do seu evangelho: “Disse Jesus a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes? Respondeu-lhe: Sim, senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta os meu cordeiros etc.” 45

O Sr. Carlos Pereira descarta-se diplomaticamente deste importantíssimo texto com a simples advertência: “Em João, a tríplice recomendação de apascentar as ovelhas e os cordeiros do

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45. Joan., XXI, 15-17





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rebanho corresponde à tríplice negação, foi apenas a restauração solene de Pedro no apostolado de que decaíra” – p. 212. 46

O julgamento é muito sumário; em consciência não o podemos subscrever. Instauremos novamente o processo. Pedro, pela sua tríplice negação decaíra do apostolado. E a prova, Sr.? Primeira asserção gratuita. Segunda asserção e essa não só destituída de provas senão absolutamente falsa: a tríplice recomendação de Jesus restaurou o apostolado de Pedro. E, dado que dele tivesse decaído, até ali não havia sido reintegrado no múnus apostólico? Não foi Pedro o primeiro dos apóstolos a quem Jesus ressuscitado honrou com uma aparição singular? 47 Mais. Antes da cena que narramos, descrita por S. João no cap. 21, conta o mesmo evangelista no capítulo anterior a aparição de Cristo a todos os apóstolos (exceto Tomé) na tarde do dia da sua Ressurreição, e as palavras que então lhes dirigiu: “Como o meu Pai me enviou assim eu vos envio a vós... Recebei o Espírito Santo, a quem perdoardes os pecados lhe serão perdoados, a quem os detiverdes lhes serão detidos”. 48 Pedro favorecido por Cristo de uma visita particular, Pedro enviado por Cristo (apóstolo = enviado), Pedro investido do poder de perdoar os pecados, Pedro ainda não havia sido restaurado na sua dignidade de apóstolo? Inadmissível!
Mais profundo, mais significativo, mais momentoso é o alcance das palavras evangélicas. Examinemo-lo.
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46. Poucas linhas acima escrevera: À própria imaginação vivíssima do cardeal Belarmino não teria ocorrido arvorar em título de nomeação ao Papado uma simples recomendação feita a Pedro... de apascentar as ovelhas e os cordeiros de Cristo", p. 212. Não sei realmente o que dizer desta imaginação vivíssima de Belarmino. Acabo de ler-lhe a vida, tendo-lhe entre mãos as obras. Em todos os seus atos e escritos revela-se o homem mais simples, mais pacato, mais moderado deste mundo. Poeta, não o foi. Na sua obra monumental de controvérsia a lógica cerrada e a documentação positiva e segura enchem-lhe de tal arte as páginas que não deixam o menor vazio aos devaneios da fantasia. Mas enfim, isto de imaginação, vê-a quem quer e onde quer. O que, porém, não acabo de admirar é como o Sr. Carlos Pereira, que não tem imaginação vivíssima, tenha ousado adiantar a afirmação acima. Da grande obra De Controversiis de Belarmino, colha t. I, Terceira Controvérsia, De Romano Pontifice, Livro I e aí encontrará nada menos de 3 capítulos inteiros (cc. 14, 15, 16) dedicados exclusivamente ao exame deste argumento. Aí verá como o príncipe dos controversistas católicos afirma sem rodeios: "at nobis difficile non erit ex hac ipsa voce Pasce demonstrare summam potestatem illi atribui, cui dicitur: Pasce oves meas" (c. 16). Aí poderá admirar com que facilidade ele demonstra que "Lutheri ratiunculae nihil efficiunt". Mas o Sr. Carlos Pereira possui uma habilidade singular, toda sua, que várias vezes havemos de por em evidência: a de citar e criticar autores católicos sem nunca os haver lido. Há pouco, a vítima foi Maldonado, agora é Belarmino, depois será Bossuet. Será isto veveza de imaginação?

47. Luc., XXIV, 34

48. Joan., xx, 21-23.





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Pedro é aqui expressamente nomeado Pastor universal de todos os cordeiros, de todas as ovelhas de Cristo, sem nenhuma exceção. O apóstolo que antes (Joan., XX, 21-23) havia recebido como outros dez uma missão comum é aqui distinguido com uma prerrogativa particular, que dele exige uma amor mais ardente, mais operoso, mais sacrificado, um amor singular, superior ao dos demais apóstolos: diligis me plus his? Esta prerrogativa é a investidura solene na mesma dignidade de chefe da Igreja, prometida em S. Mateus sob as figuras já estudadas e conferida aqui sob a imagem de pastor. Nenhuma outra exprime talvez com mais propriedade e, quase direi, com mais ternura o múnus de governar. O pastor alimenta, guia, defende, dirige, castiga as suas ovelhas. Assemelhai agora a sociedade a uma grei: o soberano será naturalmente o pastor. Não é, por isso, de maravilhar que os povos antigos do Oriente, onde é tão comum o pastorear, se tenham desde logo apoderado da imagem não natural. Em HOMERO os reis são frequentemente chamados pastores de povos. 49 Na tropologia bíblica não há figura mais usada. A Ciro rei dos Persas, diz o Senhor: “pastor meus est et omnem voluntatem meam complebis”. 50 A David, o mesmo Senhor: “tu pasces populum meum Israel, et tu eris duz super Israel!. 51 Não raro a Vulgata emprega regere onde o hebraico ou o grego dizem apascentar” 52 Nenhuma metáfora tão comum, tão óbvia, tão insofismável para indicar a autoridade social. O termo o termo ποιμανε usado por Cristo no nosso texto significa, portanto, “dirige”, “apascenta! E sem nenhuma contestação possível indica a transmissão de um poder jurisdicional. Mais. No Novo Testamento independentemente da metáfora de pastor e rebanho, ποιμανεῖν significa sem mais, a autoridade de chefe. Encontra-se várias vezes aplicado indiferentemente ao poder real (Matth., II, 6; Apoc., II, 27; XIX, 15) e à jurisdição eclesiástica (Act., XX, 28, I Petr., V,2).
Mas por que insistir: Quem não tem presente a parábola do bom Pastor e as enternecidas palavras de Jesus: ego sum Pastor bônus: Foi este divino Pastor que prestes a deixar a terra confiou
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49. De Agamenon Poimena Laon. Ver Iliada, Liv 2, passim.

50. Is., XLIV, 28

51. 2 Reg., v,2

52. Verifiquem os leitores em Miqueas, V, 2-4; Psalm., XXIX, 2; Apoc., II, 27; XII,5; XII,15; Matth., II, 6.No sentido figurado emprega a Bília o verbo apascentar em II, Reg., XII,7; Jer., XXIII, 2; Zach.,X, 2. Cristo diz de si que é o bom pastor, Joan., IX, i1-4; Pastor chamnou-o S. Pedro I Petr., V, 4, S. Paulo, Hebr., XIII, 20. Era, pois, figura usitadíssima na linguagem bíblica.





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a Pedro, depois de lhe exigir uma tríplice profissão de amor, o cuidado dos seus cordeiros e das suas ovelhas: pasce agnos meos, pasce oves meas. Cordeiros e ovelhas que tresmalham do redil onde Pedro é pastor não são cordeiros nem ovelhas de Cristo.

Relancemos agora um olhar retrospectivo ao encadeamento dos textos evangélicos que acabamos de examinar. O plano de Cristo sobre a sua Igreja desenvolve-se majestosamente desde os primeiros lineamentos até a sua última perfeição na luz da mais incontestável evidência. Na primeira vocação dos apóstolos, Cristo distingue logo a Simão, impondo-lhe o nome de Pedro, Cefas, símbolo da função capital que deveria exercer mais tarde. Durante o curso do seu ministério, em presença do colégio apostólico, desenvolve amplamente o significado escandido naquele nome simbólico. Rasgando com o seu olhar divino o véu do futuro, o fundador da Igreja prevê todos os assaltos que hão de tentar-se contra a existência, constituição e unidade, prevê todas as heresias, todos os cismas. Todas as apostasias preveem a conjuração de todas as forças do mal, - do sofisma, da violência, da astúcia, da corrupção, - contra sua obra. Prevê, e pronuncia aquelas palavras sobre-humanas dirigidas ao humilde pescador da Galileia  sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as potências do inferno não hão de prevalecer contra ela. “Pour de prédire Il fallait être profhète, pour Le tenir Il fallait entre Dieu” (D’AGUESSEAU). E Deus manteve a sua palavra. A rocha do Vaticano está firme. Pio XII senta-se na cátedra de S. Pedro após uma sucessão dezenove vezes secular.

Chega, enfim, o instante do cumprimento dos desígnios de Cristo. O Salvador volta ao Pai, a Igreja vai começar a conquista religiosa do mundo. É o momento da realização das promessas. O primeiro papa já designado recebe, então solenemente a investidura pontifical, a jurisdição de supremo Pastor: Simão, apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas.

Eis a Igreja qual saiu das mãos de Cristo. Aos nossos irmãos separados perguntamos agora: que é feito destas magníficas promessas: Onde está a pedra fundamental? Onde o grande edifício: Onde as chaves: Onde o cajado do supremo Pastor? Talvez com Lutero, com Calvino, com Zwinglio, com Henrique VIII? Com quem estará Cristo até a consumação dos séculos: Com que estava antes que nascesse o monge apóstata? Necessariamente com a Igreja. E como ou quando passou a sua assistência para os rebeldes à autoridade por ele constituída? E onde estão as provas





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desta devolução de poderes? Pobres protestantes, apelam obcecados para a Bíblia e é a Bíblia que os condena irremissivelmente. Como outrora Cristo aos Fariseus, pode hoje a Igreja Católica dizer aos seus adversários: “Examinais as Escrituras: vós julgais ter nelas a vida e elas são as que dão testemunho de mim”.53 Um célebre protestante subjugado pela força desta evidência deixou escrito: “A Igreja Católica tira sua origem de Jesus Cristo... Pedro foi posto por Cristo à frente da sua Igreja... lede o Evangelho de S. Mateus, XVI, 18-19 e o de S. João XXI, 15 e vereis que é inelutável esta alternativa: ou negar a verdade das Santas Escrituras, ou confessar que o próprio Jesus Cristo prometeu um chefe à Igreja por todas as gerações vindouras”. 54

A voz dos séculos – Interpretação imediata, literal e racional dos textos evangélicos foi a que seguimos até aqui. Com, porém, os entenderam os antigos cristãos, os velhos doutores, nossos pais na fé? É esta não só curiosidade de erudito, mas questão de momentosas consequências. Já existia a Igreja e os Evangelhos ainda não haviam sido compostos. Era sociedade perfeitamente organizada e ainda não se lhe conheciam códigos escritos. A primitiva comunidade dos fiéis viveu a sua constituição antes de a ler nas páginas mortas de um livro. Nada, pois, mais justo nem mais racional, antes de tudo, interrogarmos esta sociedade acerca da significação das leis de que é depositária fiel e intérprete viva. Interroguemos, portanto, a Igreja universal nos seus doutores, nos seus livros litúrgicos, nas suas assembléias gerais e poderemos estar certos de beber nestas fontes a interpretação genuína dos passos evangélicos que tão intimamente lhe interessam a existência e a essência mesma da sua organização social.

Comecemos pelos Padres e Doutores. Não são apenas dois nem três, não são somente os ocidentais nem os orientais, não são exclusivamente os escritores que floresceram nas épocas afastadas dos primórdios do cristianismo; é a voz constante, unânime, universal no tempo e no espaço que depõe, com todo o peso de sua irrefragável autoridade, em abono da interpretação católica.
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53. Joan., V, 39.



54. WILLIAM COBBETT, Protestant Reformation, letter, N. 40. Outro portestante ilustre: "Je suis persuadé qu'on peut soutenir victoriusemente ce dilemme: ou Jésus Christ n'a point organisé l'Eglise Catholique est celle qu'il a organizée". E. NVILLE, Thèse soutenue à genève en 1839, ap. AUDIN, Histoire de Calvin, Paris 1841, t. I, p. 513.





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Entre os latinos lembramos TERTULIANO, o vigoroso polemista CIPRIANO, bispo de Cartago e primaz da África, os grandes doutores AGOSTINHO, AMBRÓSIO, JERÔNIMO, MÁXIMO, OPTATO DE MILÉVIO, LEÃO MAGNO para não citarmos senão os mais antigos e os mais ilustres em saber e santidade.

Entre os escritores gregos é a mesma consonância, a mesma harmonia de sentimentos. ORÍGENES, EPIFÂNIO, GREGÓRIO DE NAZANZO, GREGÓRIO DE NISSA, CIRILO DE ALEXANDRIA, NELO, TEOFILATO, CHRISÓSTOMO falam na Grécia, no Egito e na Ásia Menos como Ambrósio ou Leão Magno na Itália.

S. EFREM, os livros litúrgicos da Igreja siríaca, armênia e eslava não desferem uma nota discordante no concerto universal. 55

Comemoramos indivíduos. Citemos agora o testemunho coletivo da Igreja reunida em suas assembléias gerais. E sempre a mesma consonância, a mesma unanimidade em aifrmar sem ambigüidade nem sobre de hesitação o primado universal de Pedro. É uma só a voz dos concílio s de Êfeso, Calcedônia, Nicéia (2.º), Lião (2.º), Constança e Florença em proclamá-lo de século em século até o aparecimento de Lutero. 56
A conclusão é óbvia. Ou o Evangelho não foi compreendido num ponto essencial durante os 15 primeiros séculos do cristianismo, ou o monge apóstata falseou o texto sagrado para legitimar a revolta do seu orgulho imenso.

Haverá ainda outro meio de chegar ao conhecimento das idéias da antiguidade cristã?
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55. Entre os Santos Padres não há um só que negue ter Cristo concedido a Pedro o primado de jurisdição ne Igreja universal. Nem sempre, porém, insistem o sentido literal de texto evangélico. Nas homilias e exortações ao povo, suposto sempre o sentido dogmático, desenvolvem muitas vezes, como costumam os pregadores, as aplicações morais, úteis à edificação dos fiéis. Não era mister faze antecipadamente polêmica antiprotestante em todas as prática dominicai ou livros de ascética. Mas estas aplicações morais, ou ainda acomodações remotas não comportam de modo algum a exclusão do sentido óbvio e literal do texto. Já o notou o racionalista LOISY: "Em verdade, não é necessário provar que as palavras de Jesus se dirigem a Simão, Filho de Jonas, que deve ser e foi a pedra fundamental da Igreja; que elas não se referem exclusivamente à fé de Pedro ou dos que poderão ter a mesma fé que ele; menos asinda por aqui "pedra" designar o próprio Cristo. Semelhjantes interpretações poderão ter sido propostas pelo antigos comentadores em vista das aplifações morais, e reveladas pela exegese protestante com interesse polêmico.Mas se as quisermos transformar em sentido histórico do Evnagelho não passam de distinções nulas que fazem violência ao texto". A.LOISY, Les évanglis synoptiques, t. II, p. 7. 8.



56. Ver apêndice. Po não sobrecarregarmos o texto com citações inumeráveis, reunimos neste apêndice as palavras textuais de todas as autoridade acima mencionadas. Assim poderá o leitor verificá-las diretamente e, se for mister, cofrontá-las.





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Há; e é uma ciência nova que no-lo vai subministrar. Nascida no século XIX, a arqueologia veio trazer a lume inumeráveis docuemntos de uma autoridade irrecusável. Os vetustos monumentos soterrados por séculos sob as ruínas amontoadas pelas invasões barbarescas ou pelas civilizações posteriores renascem em nossos dias para a vida da fé e da ciência. Enquanto as vicissitudes dos reinos e dos impérios, as devastações das guerras e as transformações da cultura se sucediam na superfície da terra, lá na escuridão fria e úmida das suas sepulturas se conservavam a essa relíquias antigas, testemunhas preciosas das eras passadas, depositárias fiéis e incorruptíveis das idéias, dos sentimentos, das crenças de muitas gerações. Nas estratificações da crosta terrestre vai o alvião do geólogo desencavar os fósseis que, página por página nos vêm reconstituindo a história da vida no globo em remotíssimas eras. Não menos valiosa e, por certo, mais interessante é a obra científica realizada pelas escavações do arqueólogo. Para o protestantismo os novos estudos causaram uma destas amargas decepções com que a verdade costuma vingar-se do erro. No curso destas páginas mais de uma vez teremos ensejo de socorrer-nos destas informações preciosas. Cinjamo-nos, por ora, ao nosso assunto.

Se Pedro foi por Cristo constituído o supremo jerarca da cristandade, nenhum personagem depois do Salvador deveu preocupar mais o espírito dos primeiros fiéis. E assim foi. O Apóstolo privilegiado é o principal inspirador da primitiva arte cristã. No Storia dell’arte Cristiana de GASRRUCCI se acham recenseados todos os baixo relevos funerários conhecidos em seu tempo. Neles se encontram 445 imagens do Salvador, 212 de S. Pedro, 47 de S. Paulo. Em menor n[úmero se acham figuradas outras personagens bíblicas. 57 Não raro a pessoa de Pedro, como frequentemente a de Jesus Cristo, domina toda a composição artística, constituindo o centro da idéia inspiradora que se desenvolve em numerosos quadros. Dignos de menção, sob este aspecto, são os sarcófagos de Fermo, Arles e um outro, de origem ignota, que se conserva no Museu lateranense. 58 Quase sempre um emblema de autoridade assinala a dignidade do chefe dos apóstolos: aqui é a cátedra, ali as chaves, acolá o volume da lei divina que lhe entrega o Salvador. Só Moisés e Pedro
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57. SISTO SCAGLIA, Manuale de Archiologia Christiana, RomaOMA.Ferrari, 1911, P. 294.



58. r. garbucci, Storia dell'1arte cristiana, Vol. V, Prato, 12879, TAV. 335, 340;





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empunham o báculo, símbolo do poder. Rica de significação é esta aproximação freqüente entre o condutor e legislador de Israel, o chefe constituído por Deus para libertação e guia do povo eleito, e a pedra fundamental da nova Igreja, o supremo jerarca da sociedade nascida do Segundo Pacto entre Deus e a humanidade remida. 59

Nem se pense que estas representações são peculiares a Roma. Nas Gálias (Arles, Marselha, Lião, Avinhão, Reims, Aix), na Itália (Parma, Pisa, Gênova, Verona, Milão), encontrareis sempre o mesmo simbolismos de autoridade, a mesma preeminência de importância, a mesmo confissão esculpida do primado.

Escudados por tanto peso de autoridade, por tanta unanimidade de afirmações, por tanta antiguidade irrecusável de testemunhas, podemos, sem receio de erro, afirmar que em todo o cristianismo primitivo não se conheceu a menor hesitação acerca da supremacia jerárquica de Pedro. É preciso chegamos a LUTERO ou a seus imediatos predecessores para encontrarmos a primeira negação. Era tarde, muito tarde... Qualquer psicólogo que não desconheça os segredos do coração humano dirá que uma negação interessada, depois de 15 séculos, mais se assemelha a despique de orgulho malferido que a argumento de persuasão sincera. O historiador confirmará as suspeitas do psicólogo dizendo-lhe: assim é, na verdade.

Acha-se agora o leitor em condições de avaliar em seu justo valor estas asserções do Sr. CARLOS PEREIRA: “Afirma a Igreja evangélica com a maioria dos Santos Padres que não a pessoa de Pedro, mas a pessoa teantrópica de Cristo... é a pedra, a rocha, o amplo fundamento indefectível da Igreja”, p. 223;6 e pouco adiante: o Papado é “a suprema mistificação do cristianismo legada aos tempos modernos pela superstição caliginosa dos tempos medievais”, p. 249. Esta “maioria dos Santos Padres”, esta “mistificação dos tempos medievais” constituem o mais impudente desafio à verdade histórica. Adiantar com tanto aprumo afirmações deste quilate não
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59. Neste gênero é sobretudo notável o vaso de virdro descoberto no século passado em Podgoritza. Pedro, designado expressamente pelo próprio nome, percute com um bastão não uma rocha, mas uma árvore da qual jorra um manancial de água viva. A alusão a Moisés é manifesta. Cfr. G. B. DE ROSSI, Bolletino di archeologia cristiana, VI, Roma, 1868, 1-6.



60. Releia-se este período depois do apêndice.





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é abusar indignamente da credulidade dos leitores? Mas não comentemos. Qualquer inteligência mediana já poderá sentenciar pro si sobre quem argumenta com os fatos e quem mistifica a simplicidade dos ingênuos; já poderá ver de que lado esplende a luz da verdade e de que lado negrejam as trevas “caliginosas” da ignorância.

Fechemos este parágrafo.

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